tigres

tigres

domingo, 12 de setembro de 2010

Sobre a tentativa de ser um monstro, e sua relativa impossibilidade

Sobre a tentativa de ser um monstro, e sua relativa impossibilidade


Mauricio Garrote



No filme “Psicopata Americano”, o protagonista passa todo o tempo imerso em construções fantásticas, onde é um assassino em série, praticando a violência com mulheres, colegas de trabalho, prostitutas, sempre sublinhando dois elementos: a tentativa de se dar a conhecer, ser descoberto, e a exibição de uma personalidade definitivamente monstruosa, atestada no caráter caricato (na estética dos filmes “trash”) dos assassinatos que comete.

Nessa construção compulsiva de uma narrativa fantástica de si mesmo, é pungente a angústia com que tenta convencer as pessoas de seu círculo de convivência, como seu advogado, de que é o assassino-monstro; mais até do que isso, o desespero de “ser”, ser enquanto finalmente reconhecido por um outro, num ato supostamente impossível de ignorar. “Ser” um monstro, de-monstrado, desdobrado em uma monstruosidade atestada no dispor ludicamente, como uma criança sádica, do corpo de outras pessoas.

Essa máscara do desespero ontológico da proximidade aterradora do abismo “não ser alguém”, estruturada em teoria como ideal do ego, falso self, ou qualquer figura que se caracteriza justamente por se dizer a partir do que não é, presença esvaziada de uma casca que se dobra sobre si mesma, cercando e protegendo apenas o fato de não ter núcleo, fica tato mais patente no momento cultural presente quanto conquistamos vagarosamente a coragem de olhar para ela.

No filme “O lutador”, (divulgado como a película onde Mickey Rounke voltaria a mostrar o ator que “verdadeiramente é”) o personagem é um lutador de luta livre, ou seja, um ator desse espetáculo que caracteristicamente expressa em tons trágicos, de plasticidade histriônica, as lendas do herói e do vilão, da justiça e da traição, da dor e do poder de produzir a dor em algum outro.

Ao longo da história o personagem sofre um infarto cardíaco, o que lhe incapacita para essas performances acrobáticas no ringue. Reduzido a um caco, um artigo sucateado (em tarefas humilhantes como pesar frios em um balcão de supermercado ou “ser pai” de uma moça que não conhece), o protagonista escolhe morrer em uma ultima exibição, concluindo com a percepção de que “o único lugar onde não se machuca” é o ringue. “The show must go on”, mesmo porque o único existir possível é “to show”, mostrar e ser atestado como existente.

São inúmeras as metáforas (a começar pelo cinema) desse horrível superlativo do “ser para outro”.

No filme “Um estranho vampiro” (Vampire’s kiss), o herói trágico, incapaz de estabelecer relações afetivas, (onde o não ser alguém infalivelmente dói mais), consuma-se em um mundo delirante onde descobre-se vampiro hollywoodiano com tumba, dentões, estaca e tudo.

É interessante notar que algumas instituições catalisam a produção dessas narrativas fantásticas de si, como os albergues, onde o sujeito separa-se de uma história comum (a instituição o “abriga”, “acolhe”, conferindo-lhe instantaneamente um passe para uma “nova vida“, que pode ser completamente distante diversa e até oposta à existência levada até então). “Não interessa quem você é, nós o acolheremos de qualquer maneira” – e esse acolhimento traz em si a maravilhosa oportunidade de uma “construção criativa de si” sem compromisso com os laços de chumbo da história pessoal, familiar, de trabalho e outras.

No entanto, o que acontece no mais das vezes não é eventual fenômeno dionisíaco/carnavalesco da invenção de uma máscara, um gesto lúdico que resgata outra forma de subjetivação, nova, e por isso mais leve, flexível. Longe disso, o que assistimos nesses fenômenos institucionais é a produção em massa de subjetividade “monstruosa”, que no monstruoso busca desesperadamente existir como identidade visível, e visível capitalisticamente, ou seja, rentável. O sujeito solicita à instituição médica infinitos laudos, onde lhe são outorgadas, na forma atestada pela medicina, inúmeras identidades na forma de doenças, que mais do que incapacitantes, constituem a garantia de lugar no processo de produção de bens. O sujeito doença garante renda para as instituições de cuidado, que serão financiadas pelo estado nessa tarefa hospitalar, garante renda para os laboratórios farmacêuticos, como consumidores oficiais de uma ampla gama de medicamentos. Cada “gesto de cuidado” é uma empresa certamente lucrativa: a cada passagem (pelo Pronto Socorro, Posto de Saúde, Hospital) o sujeito gera novo repasse de capital. E de forma coerente, recebe seu pagamento, o “auxílio doença”, o auxílio que mantém na ordem de produção de bens a partir do lugar de doente.

Como se vê, se produz uma articulação perversa entre o desespero de ser outro e a máquina produtora de bens, que te faz outro, ao preço de uma amputação, de um câncer, de uma loucura, de uma infecção que destrói partes do teu corpo, ou seja, infinitas possibilidades de doenças-identidade.

Algumas praticas institucionais garantem que a roda continue girando dessa maneira: o estímulo do descaso pela própria história, travestido de tolerância humanitária, o oferecimento de formas-prontas, pret-a-porter, de fácil encaixe onde o desejo de subjetivação se solidifica em peça motora dos dramas individuais de busca de ser e dos dramas nacionais de produção de riqueza, ou seja, laudos, carteira para deficiente, instalações coletivas asilares.

Como no sonho do morador de rua onde ele percebia aterrorizado que ia ser engolido por uma maquina de fazer salsicha, a possível transgressão de uma história pessoal anquilosada é proveitosamente/lucrativamente incorporada na máquina de produção de riqueza, mesmo o querer não ter nada do homem que “cai na estrada”, “vai correr trecho” é recuperado na figura do indigente oficial, até o ultimo desenlace, não menos trágico, onde seu corpo será o suporte do ensino médico nas aulas de anatomia.

Tratamentos biológicos/Tratamentos psicológicos: novas contribuições a um antigo debate

Mauricio Garrote



Esse texto pretende ser uma tentativa de interpretação genealógica da questão tratamentos biológicos x tratamentos psicodinâmicos na prática dos serviços de saúde mental.

Entendemos como interpretação genealógica o procedimento que busca mapear as forças que estão buscando afirmação em determinado conceito ou prática, vendo nessas práticas campos de força onde se debatem varias vontades de potência, e não como um território definitivamente enquadrado em qualquer verdade dita indiscutível, seja uma afirmação científica ou uma evidencia teórica.

Desde já partimos do ponto de vista de que a questão tratamento biológico ou tratamento psicodinâmico é uma reedição da antiga, porém ainda atual questão alma x corpo, ou mente x corpo, ou alma metafísica/corpo mecânico.

Primeiro um passeio pelas concepções de alma no pensamento ocidental. Antes de Platão, ou melhor, antes de Empédocles, pré socrático, é difícil identificar algo como o que chamamos de alma hoje, ou seja, o núcleo absoluto, indivisível e imortal da subjetividade, o suporte transcendental do nosso Eu empírico.

Em homero não encontraremos alma dessa forma, encontraremos o daimon, força divina que irrompia na vida do homem, motivando um comportamento apaixonado, através de sua influencia direta no THIMÓS (ou humor, posteriormente).

Em Pitágoras um animismo universal povoa de daimons todos os fenômenos: assim o homem era constantemente afetado por múltiplos daimons, desde o daimon do som do sino ao daimou da luz da manhã, identificando mais o daimon a uma efetividade (como o Exu dos africanos) do que a uma unidade dotada de intenção e vontade como a alma.

É com o médico Empédocles de Agrigento que o daimon passa a ficar parecido com a alma: é uma substância que sobrevive à morte do corpo, e que se aperfeiçoa voltando a encanar em outra existência humana.

Para Heráclito, além do sujeito que renasce inúmeras vezes para finalmente se reintegrar ao Fogo Primordial, o daimon tem ainda outra configuração: como o ethos do homem, o daimon é tudo concernente à morada, ao retiro que o homem encontra em seus valores e suas concepção de mundo.

Para Sócrates, o daimon ainda não parece o que chamamos de alma: proveniente do contato dos deuses com o homem, aparece como um enunciado em vozes “de dentro” ou em sonhos, um fragmento significante através do qual o deus configura o destino do homem.

Porém, em meio a esse desfile de forças, configurações, significantes, todos subsumidos no nome daimon, aparece subitamente a transformação em alma, no pensamento de Platão: a alma, a essência divina individualizada em cada homem, morada do pensamento e da razão, viajante através do mundo ilusório das paixões e instintos, em direção ao contato final com o mundo das idéias, finalmente livre de todo obstáculo pulsional ou arbitrário (o corpo).

Na esteira de Platão, o cristianismo Paulino aprofunda a contradição corpo/alma: o corpo, voltado para o mundo com seus prazeres e dores, suas mudanças, instabilidades e acasos, batizado como o Homem Velho; o Homem Novo, a alma, livrando-se através da ascese de toda afetação instintual ou carnal, distanciando-se do mundo, rumo ao reencontro com Deus ou à aniquilação no Apocalipse.

Funda-se no ocidente o que chamamos de alma metafísica, o núcleo essencial do homem, substância indivisível e eterna, potencialmente livre do tempo, dos instintos e de todas as vicissitudes da carne, a origem da idéia do Eu racional governando no cenário da consciência, de forma lógica e indivisa, o destino humano.

Descartes no século XVI surge em defesa dessa carcaça necessária chamada corpo - é através dos nervos, habitados pelos espíritos animais, que o mundo se apresenta ao cérebro, sítio corporal mais próximo da alma, permitindo ao homem a conquista máxima do pensamento moderno, o conhecimento. A alma precisa do corpo para, alimentando a razão, fincar as bases do conhecimento.

A medicina iluminista do século XVII insistirá na reabilitação dessa parte do humano chamada pela Reforma Protestante de “saco de vermes”- afinal, o corpo passava a ser um território privilegiado no desbravamento dos funcionamentos químicos e físicos subjacentes a outro valor sagrado/metafísico: a vida. Ou seja, o corpo é uma janela de onde a ciência pretende finalmente vislumbrar as verdades dogmáticas do pensamento moderno: se a alma está no cérebro, e o cérebro no corpo vivo, o entendimento da mecânica do corpo finalmente franquearia as portas da anatomia da alma.

Com os primeiros estudos neuroanatômicos no século XIX, o cientista sente se aproximar ainda mais o sonho da anatomia da alma: a afasia de Broca, as lesões anátomo patológicas na Paralisia Geral Progressiva,

Não é difícil escorregar desse panorama para um debate técnico sobre a eficácia dos tratamentos biológicos e psicológicos do sofrimento psíquico. De um lado, os herdeiros da alma metafísica defendendo a cidadela da alma de qualquer subordinação ao corpo: o acesso á alma passa apenas pela palavra, pela intervenção de alma para alma que através de procedimentos hipnóticos, interpretativos, cognitivos, produzirá o efeito desejado, o alivio do sofrimento ou a adequação do comportamento.

Por outro lado, os herdeiros do corpo mecânico, apoiados nas descobertas genéticas e nas novas tecnologias da neurociência (os métodos de imagem cada vez mais precisos) reclamam, ressentidos, seu merecido lugar no triunfo sobre as mazelas da alma: os psicofármacos tem efeitos incontestes.

E é no cenário da interdisciplinaridade da equipe da Saúde Mental que se trava o combate cotidiano em busca da hegemonia de um saber final sobre a subjetividade. Mas de que combate se trata? Não se trataria, ao invés de uma interação entre forças encarnadas em diferentes saberes, de uma fuga para os seguros muros dos conhecimentos inquestionáveis, como o das evidências científicas (tratamentos farmacológicos, neuroimagem) ou da solidez vetusta das construções metapsicológicas?

Quais serão as forças efetivamente envolvidas nessa questão, ou se quisermos, na insistência na separação mente/corpo?

Entre outras, uma VONTADE DE CULPA: o corpo portador do pecado/pulsão está hierarquicamente Abaixo da alma/substância divina, que se antes só se redimia através do Verbo Divino, hoje só é acessível à fala do terapeuta autorizado por alguma construção metapsicológica inquestionável.

Ou então, o corpo, antes culpado, hoje objeto passivo da técnica, antes origem de todo o mal, hoje local dos erros genéticos ou bioquímicos que nos tornam suscetíveis apenas a intervenções genéticas, químicas, elétricas, mecânicas.

E quanto à dimensão econômica dessa tão valorizada questão? Quem tem prioridade sobre o território do sofrimento, quem pode explorá-lo de maneira que gere lucro? O psicoterapeuta autorizado pela tradição da alma metafísica ou o psiquiatra autorizado pela revanche do corpo mecânico?

Da mesma forma que não há mais sentido em acreditar em um Eu metafísico, único, também não há mais sentido em acreditar em um psiquismo exilado do corpo, ou uma biologia fundada num conhecimento imparcial e asséptico de laboratório; não há psiquismo que não seja corpo ou corpo que não seja psíquico.

Há o acontecimento humano atravessado por inúmeras forças em busca de afirmação, desde as inúmeras forças dentro de cada órgão (degeneração celular x regeneração) de cada organismo (novos anticorpos para novos vírus) até as relações permeadas por tantas outras forças (mães obsessivas com limpeza e seus filhos asmáticos, videogames e suas crianças hiperativas, guerra entre laboratórios pelo medicamento com menos efeitos colaterais).

Por certo, no novo século, a prática institucional/interdisciplinar não poderá se manter apoiada em questões aparentemente “neutras” como a polêmica biológico/psíquico. Não podemos mais nos furtar, desde que aprendemos sobre a multiplicidade de almas e Eus com Nietzche e Freud a praticar a cartografia das forças envolvidas em cada intervenção clinica proposta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário