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domingo, 12 de setembro de 2010

Sobre a tentativa de ser um monstro, e sua relativa impossibilidade

Sobre a tentativa de ser um monstro, e sua relativa impossibilidade


Mauricio Garrote



No filme “Psicopata Americano”, o protagonista passa todo o tempo imerso em construções fantásticas, onde é um assassino em série, praticando a violência com mulheres, colegas de trabalho, prostitutas, sempre sublinhando dois elementos: a tentativa de se dar a conhecer, ser descoberto, e a exibição de uma personalidade definitivamente monstruosa, atestada no caráter caricato (na estética dos filmes “trash”) dos assassinatos que comete.

Nessa construção compulsiva de uma narrativa fantástica de si mesmo, é pungente a angústia com que tenta convencer as pessoas de seu círculo de convivência, como seu advogado, de que é o assassino-monstro; mais até do que isso, o desespero de “ser”, ser enquanto finalmente reconhecido por um outro, num ato supostamente impossível de ignorar. “Ser” um monstro, de-monstrado, desdobrado em uma monstruosidade atestada no dispor ludicamente, como uma criança sádica, do corpo de outras pessoas.

Essa máscara do desespero ontológico da proximidade aterradora do abismo “não ser alguém”, estruturada em teoria como ideal do ego, falso self, ou qualquer figura que se caracteriza justamente por se dizer a partir do que não é, presença esvaziada de uma casca que se dobra sobre si mesma, cercando e protegendo apenas o fato de não ter núcleo, fica tato mais patente no momento cultural presente quanto conquistamos vagarosamente a coragem de olhar para ela.

No filme “O lutador”, (divulgado como a película onde Mickey Rounke voltaria a mostrar o ator que “verdadeiramente é”) o personagem é um lutador de luta livre, ou seja, um ator desse espetáculo que caracteristicamente expressa em tons trágicos, de plasticidade histriônica, as lendas do herói e do vilão, da justiça e da traição, da dor e do poder de produzir a dor em algum outro.

Ao longo da história o personagem sofre um infarto cardíaco, o que lhe incapacita para essas performances acrobáticas no ringue. Reduzido a um caco, um artigo sucateado (em tarefas humilhantes como pesar frios em um balcão de supermercado ou “ser pai” de uma moça que não conhece), o protagonista escolhe morrer em uma ultima exibição, concluindo com a percepção de que “o único lugar onde não se machuca” é o ringue. “The show must go on”, mesmo porque o único existir possível é “to show”, mostrar e ser atestado como existente.

São inúmeras as metáforas (a começar pelo cinema) desse horrível superlativo do “ser para outro”.

No filme “Um estranho vampiro” (Vampire’s kiss), o herói trágico, incapaz de estabelecer relações afetivas, (onde o não ser alguém infalivelmente dói mais), consuma-se em um mundo delirante onde descobre-se vampiro hollywoodiano com tumba, dentões, estaca e tudo.

É interessante notar que algumas instituições catalisam a produção dessas narrativas fantásticas de si, como os albergues, onde o sujeito separa-se de uma história comum (a instituição o “abriga”, “acolhe”, conferindo-lhe instantaneamente um passe para uma “nova vida“, que pode ser completamente distante diversa e até oposta à existência levada até então). “Não interessa quem você é, nós o acolheremos de qualquer maneira” – e esse acolhimento traz em si a maravilhosa oportunidade de uma “construção criativa de si” sem compromisso com os laços de chumbo da história pessoal, familiar, de trabalho e outras.

No entanto, o que acontece no mais das vezes não é eventual fenômeno dionisíaco/carnavalesco da invenção de uma máscara, um gesto lúdico que resgata outra forma de subjetivação, nova, e por isso mais leve, flexível. Longe disso, o que assistimos nesses fenômenos institucionais é a produção em massa de subjetividade “monstruosa”, que no monstruoso busca desesperadamente existir como identidade visível, e visível capitalisticamente, ou seja, rentável. O sujeito solicita à instituição médica infinitos laudos, onde lhe são outorgadas, na forma atestada pela medicina, inúmeras identidades na forma de doenças, que mais do que incapacitantes, constituem a garantia de lugar no processo de produção de bens. O sujeito doença garante renda para as instituições de cuidado, que serão financiadas pelo estado nessa tarefa hospitalar, garante renda para os laboratórios farmacêuticos, como consumidores oficiais de uma ampla gama de medicamentos. Cada “gesto de cuidado” é uma empresa certamente lucrativa: a cada passagem (pelo Pronto Socorro, Posto de Saúde, Hospital) o sujeito gera novo repasse de capital. E de forma coerente, recebe seu pagamento, o “auxílio doença”, o auxílio que mantém na ordem de produção de bens a partir do lugar de doente.

Como se vê, se produz uma articulação perversa entre o desespero de ser outro e a máquina produtora de bens, que te faz outro, ao preço de uma amputação, de um câncer, de uma loucura, de uma infecção que destrói partes do teu corpo, ou seja, infinitas possibilidades de doenças-identidade.

Algumas praticas institucionais garantem que a roda continue girando dessa maneira: o estímulo do descaso pela própria história, travestido de tolerância humanitária, o oferecimento de formas-prontas, pret-a-porter, de fácil encaixe onde o desejo de subjetivação se solidifica em peça motora dos dramas individuais de busca de ser e dos dramas nacionais de produção de riqueza, ou seja, laudos, carteira para deficiente, instalações coletivas asilares.

Como no sonho do morador de rua onde ele percebia aterrorizado que ia ser engolido por uma maquina de fazer salsicha, a possível transgressão de uma história pessoal anquilosada é proveitosamente/lucrativamente incorporada na máquina de produção de riqueza, mesmo o querer não ter nada do homem que “cai na estrada”, “vai correr trecho” é recuperado na figura do indigente oficial, até o ultimo desenlace, não menos trágico, onde seu corpo será o suporte do ensino médico nas aulas de anatomia.

Tratamentos biológicos/Tratamentos psicológicos: novas contribuições a um antigo debate

Mauricio Garrote



Esse texto pretende ser uma tentativa de interpretação genealógica da questão tratamentos biológicos x tratamentos psicodinâmicos na prática dos serviços de saúde mental.

Entendemos como interpretação genealógica o procedimento que busca mapear as forças que estão buscando afirmação em determinado conceito ou prática, vendo nessas práticas campos de força onde se debatem varias vontades de potência, e não como um território definitivamente enquadrado em qualquer verdade dita indiscutível, seja uma afirmação científica ou uma evidencia teórica.

Desde já partimos do ponto de vista de que a questão tratamento biológico ou tratamento psicodinâmico é uma reedição da antiga, porém ainda atual questão alma x corpo, ou mente x corpo, ou alma metafísica/corpo mecânico.

Primeiro um passeio pelas concepções de alma no pensamento ocidental. Antes de Platão, ou melhor, antes de Empédocles, pré socrático, é difícil identificar algo como o que chamamos de alma hoje, ou seja, o núcleo absoluto, indivisível e imortal da subjetividade, o suporte transcendental do nosso Eu empírico.

Em homero não encontraremos alma dessa forma, encontraremos o daimon, força divina que irrompia na vida do homem, motivando um comportamento apaixonado, através de sua influencia direta no THIMÓS (ou humor, posteriormente).

Em Pitágoras um animismo universal povoa de daimons todos os fenômenos: assim o homem era constantemente afetado por múltiplos daimons, desde o daimon do som do sino ao daimou da luz da manhã, identificando mais o daimon a uma efetividade (como o Exu dos africanos) do que a uma unidade dotada de intenção e vontade como a alma.

É com o médico Empédocles de Agrigento que o daimon passa a ficar parecido com a alma: é uma substância que sobrevive à morte do corpo, e que se aperfeiçoa voltando a encanar em outra existência humana.

Para Heráclito, além do sujeito que renasce inúmeras vezes para finalmente se reintegrar ao Fogo Primordial, o daimon tem ainda outra configuração: como o ethos do homem, o daimon é tudo concernente à morada, ao retiro que o homem encontra em seus valores e suas concepção de mundo.

Para Sócrates, o daimon ainda não parece o que chamamos de alma: proveniente do contato dos deuses com o homem, aparece como um enunciado em vozes “de dentro” ou em sonhos, um fragmento significante através do qual o deus configura o destino do homem.

Porém, em meio a esse desfile de forças, configurações, significantes, todos subsumidos no nome daimon, aparece subitamente a transformação em alma, no pensamento de Platão: a alma, a essência divina individualizada em cada homem, morada do pensamento e da razão, viajante através do mundo ilusório das paixões e instintos, em direção ao contato final com o mundo das idéias, finalmente livre de todo obstáculo pulsional ou arbitrário (o corpo).

Na esteira de Platão, o cristianismo Paulino aprofunda a contradição corpo/alma: o corpo, voltado para o mundo com seus prazeres e dores, suas mudanças, instabilidades e acasos, batizado como o Homem Velho; o Homem Novo, a alma, livrando-se através da ascese de toda afetação instintual ou carnal, distanciando-se do mundo, rumo ao reencontro com Deus ou à aniquilação no Apocalipse.

Funda-se no ocidente o que chamamos de alma metafísica, o núcleo essencial do homem, substância indivisível e eterna, potencialmente livre do tempo, dos instintos e de todas as vicissitudes da carne, a origem da idéia do Eu racional governando no cenário da consciência, de forma lógica e indivisa, o destino humano.

Descartes no século XVI surge em defesa dessa carcaça necessária chamada corpo - é através dos nervos, habitados pelos espíritos animais, que o mundo se apresenta ao cérebro, sítio corporal mais próximo da alma, permitindo ao homem a conquista máxima do pensamento moderno, o conhecimento. A alma precisa do corpo para, alimentando a razão, fincar as bases do conhecimento.

A medicina iluminista do século XVII insistirá na reabilitação dessa parte do humano chamada pela Reforma Protestante de “saco de vermes”- afinal, o corpo passava a ser um território privilegiado no desbravamento dos funcionamentos químicos e físicos subjacentes a outro valor sagrado/metafísico: a vida. Ou seja, o corpo é uma janela de onde a ciência pretende finalmente vislumbrar as verdades dogmáticas do pensamento moderno: se a alma está no cérebro, e o cérebro no corpo vivo, o entendimento da mecânica do corpo finalmente franquearia as portas da anatomia da alma.

Com os primeiros estudos neuroanatômicos no século XIX, o cientista sente se aproximar ainda mais o sonho da anatomia da alma: a afasia de Broca, as lesões anátomo patológicas na Paralisia Geral Progressiva,

Não é difícil escorregar desse panorama para um debate técnico sobre a eficácia dos tratamentos biológicos e psicológicos do sofrimento psíquico. De um lado, os herdeiros da alma metafísica defendendo a cidadela da alma de qualquer subordinação ao corpo: o acesso á alma passa apenas pela palavra, pela intervenção de alma para alma que através de procedimentos hipnóticos, interpretativos, cognitivos, produzirá o efeito desejado, o alivio do sofrimento ou a adequação do comportamento.

Por outro lado, os herdeiros do corpo mecânico, apoiados nas descobertas genéticas e nas novas tecnologias da neurociência (os métodos de imagem cada vez mais precisos) reclamam, ressentidos, seu merecido lugar no triunfo sobre as mazelas da alma: os psicofármacos tem efeitos incontestes.

E é no cenário da interdisciplinaridade da equipe da Saúde Mental que se trava o combate cotidiano em busca da hegemonia de um saber final sobre a subjetividade. Mas de que combate se trata? Não se trataria, ao invés de uma interação entre forças encarnadas em diferentes saberes, de uma fuga para os seguros muros dos conhecimentos inquestionáveis, como o das evidências científicas (tratamentos farmacológicos, neuroimagem) ou da solidez vetusta das construções metapsicológicas?

Quais serão as forças efetivamente envolvidas nessa questão, ou se quisermos, na insistência na separação mente/corpo?

Entre outras, uma VONTADE DE CULPA: o corpo portador do pecado/pulsão está hierarquicamente Abaixo da alma/substância divina, que se antes só se redimia através do Verbo Divino, hoje só é acessível à fala do terapeuta autorizado por alguma construção metapsicológica inquestionável.

Ou então, o corpo, antes culpado, hoje objeto passivo da técnica, antes origem de todo o mal, hoje local dos erros genéticos ou bioquímicos que nos tornam suscetíveis apenas a intervenções genéticas, químicas, elétricas, mecânicas.

E quanto à dimensão econômica dessa tão valorizada questão? Quem tem prioridade sobre o território do sofrimento, quem pode explorá-lo de maneira que gere lucro? O psicoterapeuta autorizado pela tradição da alma metafísica ou o psiquiatra autorizado pela revanche do corpo mecânico?

Da mesma forma que não há mais sentido em acreditar em um Eu metafísico, único, também não há mais sentido em acreditar em um psiquismo exilado do corpo, ou uma biologia fundada num conhecimento imparcial e asséptico de laboratório; não há psiquismo que não seja corpo ou corpo que não seja psíquico.

Há o acontecimento humano atravessado por inúmeras forças em busca de afirmação, desde as inúmeras forças dentro de cada órgão (degeneração celular x regeneração) de cada organismo (novos anticorpos para novos vírus) até as relações permeadas por tantas outras forças (mães obsessivas com limpeza e seus filhos asmáticos, videogames e suas crianças hiperativas, guerra entre laboratórios pelo medicamento com menos efeitos colaterais).

Por certo, no novo século, a prática institucional/interdisciplinar não poderá se manter apoiada em questões aparentemente “neutras” como a polêmica biológico/psíquico. Não podemos mais nos furtar, desde que aprendemos sobre a multiplicidade de almas e Eus com Nietzche e Freud a praticar a cartografia das forças envolvidas em cada intervenção clinica proposta.

Gaya

“A principal idéia que este estudo da agressão veicula é que, se a sociedade está em perigo, a razão disso não se encontra na agressividade do homem mas na repressão daGaya: Ensaio genealógico - clinico de um caso de invisibilidade

agressividade do homem mas na repressão da agressividade pessoal nos indivíd agressividade do homem mas na repressão da agressividade pessoal nos indivíduos”.





D. W. Winnicott, 1950, “Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional”.



Maurício Garrote

mostrar detalhes 9 set (3 dias atrás)



OU seja:os vampiros "atuais"negam:as figuras da morte,as figuras do

morto como raivoso e invejoso,e a figura de uma forma de vida que é só

corpo,que vive,anda e goza sem precisar de alma,e sem temer o inferno





Maurício Garrote

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OU seja:os vampiros "atuais"negam:as figuras da morte,as figuras do

morto como raivoso e invejoso,e a figura de uma forma de vida que é só

corpo,que vive,anda e goza sem precisar de alma,e sem temer o inferno

































Dedicado à Patrícia Almeida e

Todos os analistas “saídos” das

instituições por escutarem e

falarem demais

Hoje é uma segunda feira cinzenta. Estou no inicio da manhã (por volta das 08:00) na instituição para cuidados de crianças (até 14 anos) numa região característica da favela/periferia de São Paulo. Esta instituição é um braço de uma grande organização social da periferia, mantida há anos pela igreja (junto a parceria com prefeitura, estado, empresas e outros).

Esta descrição de alguma coisa grande, ampla, não bate com a cara do lugar. É uma casa pequena um sobrado com outros cômodos que se empilham no fundo, um lugar apertado onde eu sempre me surpreendia com uma nova porta que dava para um outro corredor com outras salas. O único lugar um pouco maior (do tamanho de uma cozinha grande de casa antiga) é o refeitório, onde estou agora junto com as vinte e sete crianças que estão morando no abrigo (é como todos aqui chamam essa instituição) nesse momento. É hora do café da manhã, as crianças segurando aquelas canecas de plástico coloridas e os pães com manteiga que todo mundo conhece.

Essa é minha terceira semana, e as minhas doze horas por semana (quatro horas três vezes por semana) já permitiram que em mim se sedimentassem alguns traços das crianças e dos funcionários (uma coordenadora, assistente social, uma enfermeira e três monitoras, cada período de doze horas).

Sou um médico fazendo a função de trabalhar com aspectos da Saúde Mental das crianças. Essa tarefa foi justificada pela coordenação da organização e pelo padre – também da administração – na entrevista de seleção para o cargo. Na entrevista fui informado que as crianças tinham sido encaminhadas pelo conselho tutelar local – eram filhos e filhas de mães que vinham sofrendo violência domestica, ou elas próprias vinham sofrendo esse tipo de violência.

Citei na seleção que além de psiquiatra era psicanalista, o que definia a princípio certos referenciais éticos na minha prática clínica. Esta parte do meu discurso foi completamente ignorada. Sabia medicar crianças, sim, respondi. Já tinha trabalhado na periferia, sim, nos últimos vinte anos, sim, essa resposta agradou.

Sendo assim aqui estou eu no refeitório, entre vinte e sete meninos e meninas. As monitoras não sentam, ficam de pé, por trás das crianças e de mim. A maior parte das crianças me pergunta coisas ou fala de algum sintoma físico, pedindo remédio (dor de barriga, ferida na perna, coceira na cabeça).

No meio das crianças está ela, a pequena menina sem nome, da qual vou me ocupar principalmente nesse relato. Para falar dela me sirvo antes de um exibicionismo técnico sobre a transferência ou contratransferência, do aforismo de Nietzche.

“O que é então o próximo? – Que compreendemos de nosso próximo, senão suas fronteiras, quero dizer, aquilo com que ele se inscreve e se imprime em nós e sobre nós? Nada compreendemos dele, senão as mudanças em nós que são por ele causadas – nosso conhecimento dele semelha um espaço oco a que se deu uma forma. Nós lhe atribuímos as sensações que os seus atos despertam em nós, dando-lhe, assim, uma falsa positividade inversa. Nós os construímos segundo o que sabemos de nós, dele fazendo um satélite de nosso próprio sistema : e, quando ele nos ilumina ou se escurece, e somos a causa ultima de ambas as coisas – nós acreditamos o contrario! Mundo de fantasmas, este em que vivemos! Mundo invertido, virado, vazio, e no entanto sonhado cheio e reto!”



F. Nietzsche, Aurora, ........... 118.



Fique claro portanto, que me limitarei a falar da menina sem nome em mim, por mais que isso ofenda qualquer assepsia da abstinência analítica ou de um desejo “objetivamente” do pesquisador social.

Ninguém nunca falava da menina sem nome, mas ela estava sempre lá, entre as outras crianças. Fosse nas refeições, ou nas brincadeiras, ela fazia parte do grupo, apesar do grupo parecer não enxergá-la. Na hora de escolher quem era da equipe de quem, ela era sempre a ultima: não se lembrava dela como possível companheira. Os meninos falavam das meninas, umas chatas, outras bonitas, mas nunca dela. Era como se a menina sem nome fosse quase um equipamento institucional: brincava, nunca brigava ou reclamava, conversava com as outras crianças e as tias (as monitoras). Suas respostas eram sempre adequadas, falava obrigado e por favor sempre. Ou seja, a menina sem nome era o exemplo.

Era como as monitoras me falavam dela. Um exemplo! Tinha dez anos, mas era “muito madura”, sabia entender quando uma criança menor pegava seu brinquedo, não brigava, sabia dar a vez para a outra criança que estava precisando mais de ir no banheiro. Dava gosto! “Seu nome... Ah! Esqueci! Como é mesmo o nome dela, gente?

Diz a tradição cabalística que a alma, antes de nascer na Terra, traz em sua memória todo o conhecimento universal. Por ocasião de seu nascimento, Deus lhe dá o seu nome e, colocando o dedo sobre seus lábios, faz a advertência shhh (Psiu...) E a alma vem à luz sem lembrar de nada.

Bem, talvez a menina sem nome não tivesse passado por essa parte, será então que ela não tinha sido destruída da memória sobre tudo o que existe? O que será que ela insistia em recordar?

O nome da menina era Gaya. Ela me contou, assim, sem muito interesse. Eu a havia conhecido no dia que me chamaram “com urgência” – eu estava em outra das infinitas salas – para atender Gaya, que estava tendo “uma convulsão”.

Do ponto de vista médico, era evidente não se tratar de uma convulsão epiléptica, (nem parcial complexa, nem generalizada). Gaya estava hipnotizada por si mesma: olhos bem abertos, sentada no chão, oscilava com o corpo para frente e para trás, contando a história de uma menina que ao nascer deixou a mãe muito triste – no meio da história gritava “Mata ela! Mata ela! Eu quero que mate ela!” Após isso adormeceu, dormindo por duas horas.

Ora, parece que de algum jeito já estavam “matando ela” – ela não tinha nome. Ela conseguia, com sua perfeita correspondência ao desejo institucional, se tornar invisível. Me lembro de Celso Athayde e M V Bill.

“Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível!!”... Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito.

“Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo: tudo o que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos.” Ou : “o preconceito provoca invisibilidade na medida que projeta sobre a pessoa um estigma que a anula, a esmaga e a substitui por uma imagem caricata, que nada tem a ver com ela, mas expressa bem as limitações internas de quem projeta o preconceito. Por isso seria possível dizer que o preconceito fala mais de quem o enuncia ou projeta do que do quem o sofre, ainda que, por vezes, sofrê-lo deixa marcas”



(Luiz E. Soares, M V Bill e Celso Athayde – CABEÇA DE PORCO)



O que o preconceito, ou a caricatura de Gaya, veiculado pelas monitoras ou pela própria crise convulsiva dizia da instituição ou da família de Gaya?

Conversei com a mãe de Gaya, Samanta, na sala de seu barraco na área pública (outro nome para favela) que envolvia como um mar a organizada e estável ilha da organização onde eu vinha trabalhando.

Já no começo da conversa perguntou se dava pra eu dar uma receita de Fluxetina e uma de Diazepam, o médico do posto de saúde próximo tinha ido embora (que surpresa!) e ela estava precisando, estava muito nervosa.

O que a deixava tão nervosa? O Bili, pai da Gaya, era usuário de crack. Não que fosse bandido ou trabalhasse no tráfico, mas acabava queimando tudo o que ganhava trabalhando de frentista “nas pedra” – e chegava o salário, Bili sumia dois, três dias, voltava seco, cara chupada, “só o pó”. O que salvava era que Samanta fazia uns bicos de doméstica, tirava algum para por comida na mesa. Hoje era sua manhã de folga.

Me ofereceu um café bem doce. A preocupação dela era com a menina – quase perdeu ela – sangrou no ultimo mês – mas a patroa deu uma força, conseguiram vaga no SUS, ela ficou deitada dois meses e a menina nasceu – foi a patroa que deu esse nome de Gaya, até no nome a menina ficou estranha.

Só que depois que a menina nasceu ela ficou louca da cabeça – falava coisa com coisa, não queria tomar banho nem comer – pensava até em fazer coisa ruim com a criança. Não deixaram ela sair do hospital – foi para o hospital de maluco enquanto Gaya ficou com a patroa – o Bili tinha sumido, pirou.

Quando voltou não conseguia nem tomar banho sózinha – os remédios deixaram ela dura, ela até babava. Olhava para a menina ali, coitadinha, uma criaturinha de Deus – mas ela, mãe, parecia inválida, às vezes até se mijava. Dentro dela tudo vazio: não queria TV, não queria comer, nem a cesta básica que a patroa trazia. A patroa insistia pra ela pegar a criança, ela pegava, mas, sabe, era como se pegasse um pedaço de pau. Ela tão bonitinha! E a mãe aquele traste. O Bili deu de ficar mais louco – batia na mulher quando chegava chapado, gritava que ela agora não prestava mais pra nada, nem pra foder. Nem pra foder.

Quando o conselho tutelar veio (a vizinha falou que a criança gritava a noite toda) descobriu as marcas de queimadura de cigarro nas costas da menina. A mãe foi pro hospital de maluco, perdeu a guarda da menina, a menina foi pro abrigo, sei lá, faz tempo que não vejo.

Saí do barraco e olhei aquele cenário imutável da periferia: um combate sangrento entre forças – potências buscando mais potência, o que na periferia queria dizer: sobreviver. Na viela do barraco da mãe de Gaya apareciam três cadáveres por semana. Tiros na cara, se tinham dedurado o chefão da boca de fumo, tiros na bunda, se não tinham pagado.

A vida banalizada na carne morta na porta do barraco ou imersa no esgoto a céu aberto, o cenário dos primeiros anos de vida de Gaya, além da mãe deprimida e espancada pelo pai. Bili louco com as pedras, empinando pipa e usando bermuda, “só na brisa”

Estou na reunião de equipe. Só mulheres, todas muito caridosas, orgulhosas de sua contribuição para tornar o mundo melhor.

Falo da história de Gaya: a depressão da mãe, o desejo de que a filha morresse, a tortura com as queimaduras de cigarro, todo o ódio sentido pela criança que não pôde se atrever nem a ser criança, transformada em mini adulta, sem lugar para ficar com raiva. A raiva hoje aparece na descarga motora das convulsões, na tragédia novamente representada onde entra no lugar da mãe e grita para que matem aquela criança.

Escândalo geral. Desconforto entre as monitoras. “Por que conversar justo sobre a Gaya? Ela é um exemplo, é uma das melhores crianças!”

Quem nos dera todas as crianças fossem Gayas, educadas, gratas, limpinhas!

Percebi que minha ultima chance era recorrer à autoridade de um discurso técnico. Lembrando do texto “Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional”, de São Winnicott no “da Pediatria à Psicanálise”, engatei uma primeira e tentei:

Quando a criança é bem pequena, logo ao nascer, ela tem alguns comportamentos dirigidos à mãe que podemos ver como agressivos – a criança, em fases de excitação, morde o mamilo da mãe, bate nela, solta gases – no entanto nessa fase a criança ainda não reconhece que a mãe agredida nos momentos de excitação é a mesma que ela acaricia em momentos de um amor mais apaziguado, de satisfação pulsional. Winnicott chama essa fase de fase da crueldade ou “ruthlessness”, onde a criança ainda não integrou dentro de si as “duas mães”, a agredida e a que recebe carinho.

No entanto, se a mãe mantém-se presente, viva na relação com a criança, esta passa a integrar as “duas mães” numa única, passando a desenvolver uma preocupação e uma culpa em relação à mãe, o que dará origem ao impulso de cuidar da mãe , a capacidade de amar.

Claro que não falamos aqui de uma compaixão do bebê pela mãe, mas de um estado de simbiose tal entre a dupla mãe – bebê que faz com que a criança sofra ao perceber o sofrimento da mãe.

Se a mãe não reconhece o impulso da criança para a reparação , ou se aparece para a criança como sempre ferida, machucada, machucada, deprimida, as fantasias de estar destruindo a mãe e a ameaça à própria existência advindas dessa fantasia (sem mãe não há bebê), a criança vai construir mecanismos preventivos de manifestação de agressividade, como tornar-se cada vez mais adaptada ao desejo dos adultos.

Imaginemos um bebê que tenha vivido em escala monstruosa a ameaça da mãe sucumbir aos seus ataques (por uma intensidade pulsional desmesurada ou por uma mãe deprimida). Esse bebê desenvolverá mecanismos de monitorização constante do bem estar da mãe (medido, por exemplo, pelo carinho que a mãe lhe dispensa).

Na melhor das hipóteses, esse bebê se tornará alguém cuja neurose lhe possibilita um talento; um médico, um psicólogo, um assistente social, etc. Na pior, vai se tornar a menina sem nome, a menina invisível, Gaya.

Na reunião da equipe, após três meses de seis, de forma “pesarosa”, “contrita”, “profissional”, a coordenadora da equipe me comunicou que meus serviços já não eram necessários naquela instituição. Meus conhecimentos técnicos “avançados” eram demais para as pessoas simples que eram as monitoras, e uma má interpretação do que eu falava podia levar a idéias perigosas como a possibilidade da criança ter raiva da mãe, ou mesmo da mãe desejar matar seu filho.

Hoje guardo uma lembrança boa de Gaya. Em atendimento que usei a técnica da narrativa, ela me contou uma história de uma menina que freqüentava um cemitério. Com um lápis ela se encarregava de escrever nas lápides o nome de quem havia morrido (as lápides estavam apagadas) e assim agora podia separar os nomes dos vivos dos nomes dos mortos.

Entre os dos vivos, encabeçando a lista, claro, Gaya.

Sobre a tentativa de ser um monstro,e sua relativa impossibilidade

Este é um texto escrito durante meu trabalho como médico do PSF na UBS Boracea,quando atendia moradores de rua albergados no Albergue Boracea.Apesar de ter sido escrito há um ano,acredito que há aí algumas coisas interessantes.

No filme "Psicopata Americano"o protagonista passa o tempo todo auto-hipnotizado em devaneios onde é um assassino em série,praticando violências com homens e mulheres colegas de trabalho,prostitutas,sempre prisioneiro de dois torturantes imperativos:dar-se a conhecer,ser descoberto pela polícia como um monstro psicopata;divulgar ao mundo sua personalidade definitivamente monstruosa,atestada no caráter caricato(na estética dos filmes "trash")dos assassinatos que comete.
Nessa construção compulsiva de uma narrativa fantástica de si mesmo,é gritante a angústia com que tenta convencer as pessoas de seu círculo de convivência,como seu advogado,de que é o assassino-monstro;mais até do que isso,o desespero de "ser",ser enquanto finalmente reconhecido por um outro,num ato supostamente impossível de ignorar."Ser" um monstro,de-monstrado,desdobrdo em uma monstruosidade comprovada no dispor lúdicamente ,como uma criança sádica,do corpo de outras pessoa.
Essa máscara do desespero ontológico da proximidade do abismo "não ser reconhecido como alguém",estruturada em teoria como ideal do ego,falso self,ou qualquer figura que se caracteriza justamente por se dizer a partir do que não é,presença esvaziada de uma casca que se dobra sobre si mesma,cercando e protegendo apenas o fato de não ter núcleo,fica tanto mais patente no momento cultural presente quanto conquistamos vagarosamente a coragem de olhar para ela.
No filme "O Lutador"(divulgado como o trabalho onde Mickey Rourke voltaria a MOSTRAR o ator que "verdadeiramente é") o personagem é um lutador de Luta Livre,ou seja,um ator desse espetáculo que característicamente expressa em tons trágicos ,de plasticidade histriônica,os mitos do herói e do vilão,da justiça e da traição,da dor e do poder de produzir a dor em algum outro.

Vampiros II

Maurício Garrote


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OU seja:os vampiros "atuais"negam:as figuras da morte,as figuras do

morto como raivoso e invejoso,e a figura de uma forma de vida que é só

corpo,que vive,anda e goza sem precisar de alma,e sem temer o inferno

Vampiros

Os vampiros estão na moda.Nada de novo nisso,já que os morcegões

habitam com familiaridade o imaginário literário,cinematográficoe

teatral desde a publicação do "Drácula",de Bram Stoker,em meados de

1890.

O que chama mais atenção são as adaptações que as figuras noturnas tem

sofrido, adaptações por vezes mais delicadas do que simples mudanças

de corte de cabelo ou vestuário,como no cinema.

Por exemplo:há vampiros hoje que são contra a violência,e até contra o

sexo antes do casamento.Tudo bem,mudanças éticas são formas bastante

eficientes de adaptação.Mas há mudanças que não são tão explícitas,que

se efetuam no recalque de certos elementos do mito,e que são as que

mais nos interessam.Justamnente porque nesses recalques vão aparecer

elementos inquietantes de nossa época.

Primeiro:nos atuais modelos adolescentes de vampiro,vividos por moços

e moças lindos "de morrer",recalca-se um elemento tão importante do

mito como sugar sangue:os vampiros são corpos mortos animados,o que

lhes confere características importantes como a pele fria,a palidez

cadavérica,a magreza esquelética,em suma,o aspecto de um corpo morto.O

vampiro é uma figura da morte.

Daí que é difícil imaginar um(a) adolescente de hoje fascinado com tal

figura,cheirando mal,gelada e endurecida.Mais do que isso:o vampiro é

um corpo morto passeando por aí,não um moço que morreu mas não morreu

e vaga melancólico pelas paisagens da moda.Ou seja,o vampiro é uma

figura eterna da morte,e não de juventude eterna.

Segundo,o vampiro não é bem humorado;os mitos que deram origem à sua

figura têm sua origem em histórias de defuntos que voltam da tumba

para se vingar dos vivos,ou por eles estarem vivos,ou por não terem

honrado seus mortos como estes desejavam.Nessa vingança são

invejosos,cruéis,imorais,são puro ressentimento e amargura;são figuras

de desttruição e rancor.Nada a ver com jovens inconformados com um

mundo desumano(!) que caminham por uma eterna noite "blazé".

Terceiro,o vampiro é uma reação de pequenas comunidades européias

contra a visão cartesiana do humano que invadia ,através dos

colonizadores,o imaginário pagão da Europa oriental e central.

Contra um homem cartesiano composto de alma e corpo,que liberava sua

alma imortal no momento da morte,dando lugar a um corpo

-coisa-cadáver,"res extensa",o mito do vampiro contrapunha uma forma

de vida que prescindia da alma

.Claro que paralelo às epidemias de vampirismo dos séculos XVI e

XVII,a igreja entrou em campo com a idéia do vampirismo como

maldição,resultado de atos do morto como não ser

batizado,suicidar-se,ser filho ilegítimo,fornicar fora do

casamento.Mas fica no âmago das histórias da criatura noturna esse

desafio à antropologia cristã-cartesiana,o triunfo impertinente de

mortos vivos que andavam e desejavam sem precisar ter uma alma;mais

que isso,estavam livres da danação eterna no inferno,já que o que vai

para o inferno é a alma,coisa que eles não tem.

Devaneios

Cada vez mais os devaneios me parecem inseparáveis das situações de


restrição de liberdade.Quem devaneia é alguém que não pode sair

andando em direção ao objeto de seus devaneios.O adolescente que sonha

acordado com o encontro amoroso durante a aula,o prisioneiro que

sonha com a praia de dentro da cela,o passageiro do ônibus que sonha

com a cerveja na praça.A angústia do constrangimento físico se

volatiliza na leveza do que devaneia,e uma vez mais o sonhador sente a

potência do seu desejar.

O corpo restrito preso a um mundo de peso se torna leve etéreo e dança

nos caprichos do pensamento.Daí que o devaneio seja irmão do sonho e

da poesia;aqui a beleza já não é capricho,mas artigo indispensável

para a sobrevivência.

domingo, 5 de setembro de 2010

Sobre a prática do profissional da ssaúde

O caminhante e sua sombra: Convite a interlocução: "Espero que esse lugar virtual sirva como um respiro para os que como eu tem insistido na batalha do dia a dia pela dignidade no a

tendimento..."
Se fõssemos escolher uma entre as várias capacidades necessárias para atuar em atendimento como profissional da saúde escolheríamos certamente a capacidade de implicação no destino humano/trágico de um outro além de si mesmo.


Capacidade de implicação:possibilidade de ser invadido por ondas de sentimentos,sensações corporais,imagens,a partir do contato com um outro.Essa sensibilização inclui um desejo de intervir,de embarcar no destino trágico do outro,no sentido de viabilizar o advir em ato de suas potencialidades singulares.

Embarcar nesse destino trágico não implica em uma idéia de "juntos para sempre,para o que der e vier"-a intervenção pode ser pontual,momentânea,ou contínua por longos períodos.O fato principal aí é o desejo de intervir na infinita cadeia de fatos que vão configurando um destino;de ver florescer,expandir,afirmar-se o outro nas suas possibilidades.

Lembrar que essa intervenção não é necessáriamente liga da a um alívio do sofrimento(mesmo porque são raras as vezes onde isso é possível).O gesto terapêutico vai no sentido de aumentar o potencial de vida disponível para o outro.Isso pode ou não resultar em alívio da dor.


Não falamos aqui da onipresente posição de compaixão pelo outro,pena do outro,de ocupar o vértice formado pela onipotência do salvador,a culpa do santo ou a arrogância do médico.O vértice oposto a esse é ocupado por um outro objetivado,passivo,coitado,desvalido,excluído,doente,em suma num suporte para a redenção de meus pecados,para a consagração do meu saber,para a tábua de minhas valorações,e por fim sentido de minha vida.


Não.


O que nos move no cuidado do outro é nosso desejo de afirmação de uma potência,resultante de um transbordamento de vida que nos excede.Um convite à luta contra uma circunstância adversa,um oportunidade de exercício de nossa força.Um desejo de expansão,vida desmedida que em seu exagero e prodigalidade ingênua se dá.Gozo quando sinto que adiciono força à vida do outro.

Não fazemos nada em nome de ninguém nesse campo.Ou fazemos por nós,como bolinadores escrotos usando a figura objetivada do "paciente"para nossa ascenção na escala do mercado,mercado das benesses do céu ou mercado das vitrines das competências científicas,humanitárias.Ou fazemos em nosso nome quando no canalizar de nossos transbordamentos de vida para o cultivo,o florescimento,a itensificação do destino do outro.

Destino trágico do outro:não anuciamos esperança de salvação,menos ainda de uma que pudéssemos garantir.Há que ser honesto e reconhecer que a vida do outro,como a nossa,é constante travessia,luta,superação;e sem sobremesa no céu.O destino humano é trágico-a potencialização do humano passa pela lida com o sofrimento.

Falamos de destino no sentido de que não há livre arbítrio,mas gestos,atitudes,coportamentos resultantes dos combates entre os fluxos,resultantes que montarão as cofigurações sempre provisórias da subjetividade.Esses fluxos mantêm-se em geral opacosà consciência:são anteriores à percepção de si do indivíduo,alheios ao seu conhecimento e projetos,acidentais,circunstanciais.Se figuramos a situação da ótica de um Eu,cabe a imagem de uma jangada na superfície do mar aberto transtornado por uma tempestade.(Imagens repetidas infinitamente sempre que se afirma a figura do Eu.)


Na ótica de um participante que se desloca,a imagem seria a de um feixe de fios de luz,ou da infinitude de microorganismos em interação em uma poça d'agua na chuva de uma floresta tropical.

Assim,a saúde do cuidador aparece no seu desejo de estar junto como a alegria exuberante de uma criança que corre pela primeira vez para o mar;um transbordamento de forças hipnotizado pelo desafio.


Nem sempre estamos investidos de tal prodigalidade;e aí não podemos usar ou dar o que não possuímos.


Voltando às idéias:elas foram criadas como unidades significativas constituindo dispositivos para avaliações urgentes:um predador que passou e deixou um vestígio,uma planta que pode ser comida,a possibilidade de ser atacado e assaltado em certas ruas (ou em todas)da cidde,a presença de uma doença que requer tratamento imediato.


Fundamentalismo:fazer de uma idéia um deus:absoluto,imutável,eterno,sem origem,sem fim.Objeto mágico,que portado por mim assegura que estou no caminho certo,que sou justo,bom.Garante que quem percebo como outro é do mal,que meu direito e dever é eliminá-lo.

Assim cruzamos na vida com várias configurações fundamentalistas de pensamento:religiosas,técnicas,científicas,universitárias.

Os fundamentalistas são seprew chatos de uma maneira inconfundível:falam da sua preciosa verdade com brilho nos olhos,olhando de cima ou para um ponto no infinito.Não dão risada-sorriem discretamente.São sempre amigos de uma moral:certo e errado saem fácilmente de suas bocas adornadas com um batom discreto ou com barbas comportadas.Alguns são ferozes,esbravejando imediatamente quando não obedecidos;outros são gentis,condescendentes,na certeza de que possuem a pedagogia que nos curará de nossa ignorância.Me lembro de uma entrevista de emprego onde me disseram que eu era livre para trabalhar como quisesse desde que dentro das rotinas preconizadas pela instituição.A bela entrevistadora terminava cada parágrafo professando sua fé pedagógica:"você está entendendo,não é?"


Há uma marca da convivência com esses senhores que merece ainda uma vez ser comentada:junto aos fundamentalistasde nossa cultura(sejam psiquiatras biológicos ,psiquiatras espirituais,psicanalistas,militantes da reforma psiquiátrica ou de outra boa nova):junto a eles nos sentimos sempre coo se não existíssemos.É como se (ou é mesmo)ao nos ausentarmos o satisfeito orador fosse continuar sua ladainha da mesma forma.(mesmo que fôssemos substituídos por ursos,robôs ou qualquer outra espécie de platéia).Haja potência de afirmação para sair ileso de seu convívio.

Não somos representados por nenhuma idéia ou pessoa;a idéia de que podemos ser representados por alguém é a idéia de que existe uma outra cena,outra instância,outro lugar,onde não podemos entrar por alguma inadequaçãocongênita.Nesse lugar tabu acontece algo muito gostoso,poderoso,que todos nós aqui fora queremos:sejam as reuniões dos senados,das lideranças,dos centros acadêmicos,as conversas dos adultos,as reuniões da diretoria,as brincadeiras do papai com a mamãe.A interpretação psicanalítica desse lugar como onde papai e mamãe fazem o papai e mamãe foi espirituosa;infelizmente a idéia foi rápidamente recuperada num novo fundamentalismo com o pretenso poder de decifrar-nos todos.

sábado, 4 de setembro de 2010

Não defendemos nenhuma idéia.Usamos idéias para nos defender.Usamos idéias para combaater a angústia,a solidão,o medo do não reconhecimento,a impotência.

O pronome "nós" aqui não se refere a qualquer grupo de indivíduos.Fala da multiplicidade de forças em busca de afirmação que atravessa meu corpo agora,e possívelmente outros corpos .Daimons múltiplos faiscando por aí,pequenos Sacis,,Hermes menino roubando os bois de Apolo.Exus irrequietos habitando encruzilhadas.NÓS.

O pronome "nós" aqui não é um convite como"você não pensa assim também?"Esses convites para grupalidades falsas,pálidas,são formas covardees de exercer pode sobre o outro."Aquele é da minha turma,ele é como eu,ele vai fazer o que eu falar."Não.Lutemos pelo poder com elegância.



Não acreditamos em uma existência sem o exercício de poder sobre o outro.O nenê incide forças sobre o mamilo e todo o resto do corpo da mãe.O joão de barro fecha a fêmea em casa durante o crescimento do filhote.

No entanto existem formas reativas,covardes(pricipalmente porque não estão à vontade consigo mesmas),que não se declaram em combate desde o início,não buscam o combate aberto,mas o ataque a alguém que está fraco e não pode revidar.Assim a violência:a violência é o exercício de um poder sobre o outro quando o outro não tem como reagir;a violência é o gozo com essa forma canhestra,indigna de exercício de poder.

Assim,molestar uma criança é um exercício de podertipo VIOLÊNCIA.Tratar alguém com negligência  no momento onde podemos fazer diferente é violência.A sedução barata de propostas grupalizantes perversas é violência.(junte-se a nós,você também pode,você é como nós)

Há os que são como hienas:esperam omais fraco e doente do grupo ficar para trás,e então atacam.Nada a ver com astúcia ou coragem;tudo a ver com covardia,a forma escrava de estar na vida.Há os que nascem para hienas.


O político que faz promessas que sabe que não vai cumprir;o apresentador de TV que seduz com um mundo que não existe(e ele sabe que não);pais que gozam com o medo que produzem nos filhos-há os que nascem para hienas.

Os que se escondem atrás de propostas humanitárias,democráticas,dizendo"eu sei o que é bom para você,povo,paciente,criança,louco"e gozam com o poder espúrio de alguém que bolina o outro no ônibus lotado:há os que nascem para hienas.


As hienas parecem estar sempre rindo;na verdade arreganham os lábios,mostrando os dentes,porque não se cntém de excitação .(como os que salivam enquanto falam,e tem que estar sempre engolindo a baba que escorre junto com seu discurso sedutor)

Somos habitados por uma multidão de figuras,idéias,desejos,afetos.Não só em termos do que guardamos na memória"mental",mas do que levamos impresso no nosso jeito de mexer o corpo,nas expressões faciais,estilos do vestir,entonações da voz.Podemos pensar o corpo como um multicomplexo dispositivo de captação,armazenamento,processamento,geração de forças;forças que são conhecidas pelo corpo como sensações,lembranças,sintomas,inflexões da vontade de poder.


Da mesma forma que só conhecemos a eletricidade pelo seu efeito(o giro da hélice do liquidificador),também cada uma das forças que incidem sobre o corpo é conhecida pelo seu efeito.Ou seja:o que o corpo conhece é o efeito.O corpo constrói a figura de um agente no espaço exterior como forma forma de lidar com o efeito(fazê-lo parar,fazê-lo continuar)


O corpo fala ao efeito:"mais"ou "pare".Lembrar que o corpo não diz só com a voz;o o corpo é o texto na teatralidade(mais ou menos óbvia,mais ou menos brega)histérica.

Lebrar que o corpo não é acometido só por forças motoras(que o empurram,compriem,esquentam,distendem).É acometido por ondas luminosas,pulsos eletromagnéticos,substâncias que o invadem pelos pulmões.O corpo é interface de infinitas dimensões ondem defletm infinitas forças.


Bebemos um café entre um atendimento e outro.Todo o corpo se organiza para buscar nesse quente líquido preto o açúcar,o calor,o sabor,a memória de situações de acolhimento,a experiência primeva de proteção e calor junto ao fogo;bebemos a possibilidade da construção de um abrigo,absorvemos o alimento quente como na primeira mamada,desaparecemos no escuro anônimo da morte ao final do café.


Lembrar que a memória não é uma marca permanente e imutável,produzida no passado,acessível hoje.A memória acontece no corpo,e portanto ela é construída de novo a cada unidade de tempo que o corpo vive;a cada batimento cardíaco,a cada inspiração(ou seja,a memória também é "inspirada",criativa).Sem sangue no sistema nervoso não há memória,sem açúcar no sangue não há memória,sem estimulação neurossensorial contínua do repertório experimentado não há memória.A memória não é uma entidade transcendente,guardada na alma de Santo Agostinho ou no hipocampo do neurologista.A memória é viva,precisa ser alimentada,é uma experiência corporal.


Tudo que fica impresso no corpo  e passa a ser determinante na experi~encia do agora é memória.A memória genética,a memória na corporalidade,a memória nos gestos da moda que repetimos,as expressões faciais ddos atores americanoos que utilizamos.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O caminhante e sua sombra: Convite a interlocução

O caminhante e sua sombra: Convite a interlocução: "Espero que esse lugar virtual sirva como um respiro para os que como eu tem insistido na batalha do dia a dia pela dignidade no ll

atendimento..."
Há algum tempo atrás,entre um instante e outro,entre uma ilha de sentido e outra,procurando por um presente para alguém querido,fui capturado por uma circunstância estranha,silenciosa e significativa como a primeira gota de uma tempestade.
Dentro da pequena floricultura,escura,forrada de tristes flores que pareciam há muito estar sentindo que ninguém passava para olha-las-escuridão meia luz silenciosa,macia,mas com cheiro desses lugares onde não há tempo-atrás do balcão do fundo uma velha senhora parecia mais u entre os vasos de flores esquecidos.
O que produzia em mim aquela impressão de ruína de templo,de palavra última presa nos lábios ,esquecida no silêncio da despedida?
Dois pombos no chão.Mansos,sossegados,andando em dupla pela loja como um casal de velhos,uma caminhada sem destino que tornava opressiva aquela atmosfera de tempo parado.Mais pombos-agora vejo,são muitos;todos sem olhos.No lugar dos olhos o vazio,ou tristes pálpebras cobrindos órbitas vazias,cortinas fechadas sobre uma janela que não se abre.
Todos os pombos cgos.Como?De onde vieram?A velha no fundo escuro da loja,recitando uma frase tão vazia que só intesificava o silêncio solene de tudo aquilo."Eles foram aparecendo..."
A tempestade se transformou em várrias outras,como uma sucessão de pingos que tivessem todo o espaço para si próprios,um a um;pinga em meu rosto agora uma dessas gotas.Lágrima?
Colhido novamente por um desses hiatos entre um instante e outro,me recordo da solidão silenciosa dos pombos que haviam perdido a largueza dos vôos,não vendo mais as flores que assim perdiam a generosidade dos olhares.
Lágrima.Estrela única no céu sobre o mar.Olho cego deixado para trás pelas flores que agora dançavam sobre as ondas.Na praia,espelho espraiado sobre areia secular;ondas guarrdam entre seus murmúrios a confusão das vozes que já foram e o lugar ds que virão.
Amanhece.O sol é um enorme olho que não é cego-aquece com seu olhar terno todas as lembranças até então escondidas na noite;desperta os pássaros,desperta novamente as vozes em turbilhão-imenso olho flamejante que vê e com sua visão fecunda mais uma vez todas as histórias que ainda serão contadas,a promessa da fruta doce nos ventres escuros das sementes,propiciando a eclosão de todo oainda não visto ou vivido em surpresas radiantes-multicores.
Em algum lugar da memória a pequena loja também se ilumina;novas flores ensinam a outros pombos o vôo guiado pelo calor esperançoso ,acolhedor do olho que tudo naora na nova manhã.

domingo, 29 de agosto de 2010

Convite a interlocução

Espero que esse lugar virtual sirva como um respiro para os que como eu tem insistido na batalha do dia a dia  pela dignidade no atendimento em Saúde Mental.Lembrando que a dignidade não está só nas formas do cuidado,mas na sobrevivência do cuidador como sujeito criativo e desejante.Nesses tempos de velocidade,ferocidade e eficácía,nunca é demais lembrar que a clínica da saúde mental só está viva enquanto surge como produção a dois,e o único instrumento de trabalho do clínico é seu próprio aparato psíquico,ou seja,a escuta de seu próprio corpo,suas lembranças,seus afetos.A percepção do si mesmo através das inflexões da vontade de poder.Haja Dioniso pra dar voz a isso no SUS!