tigres

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segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Os medicos estão passando por um processo de "autistização"

Nas minhas diuturnas caminhadas pelas veredas das práticas de saúde(em Pronto Socorros,UBS,CAPS),mesmo na função docente junto a Residentes Médicos,um fenõmeno tem me alarmado:a transformação do ato médico de encontro humano em acontecimento burocrático,algo assim como quando você vai em alguma repartição para carimbar um documento,ou passa pelo  caixa do supermercado para pagar.
O médico hoje não olha para o paciente.Durante a consulta,passa dados para um computador,enquanto o "cliente" se queixa.Ao final do processo,aperta o botão de imprimir e entrega uma receita e um pedido de exame.
Tenho ouvido colegas (da minha idade e mais novos)afirmando que preferem trabalhar em Medicina de Urgência porque"não tem que ouvir história,não tem que aguentar família"."No Pronto Socorro e pápum tem que entubar,desfibrilar,é tudo procedimento que vem em algoritmos,é simou não."
Será?Recentemente me pediram para avaliar um paciente que vinha dando entrada no PS há quatro dias com dor precordial:"os exames não davam nada",então foi proposta a hipótese de que se tratava de u dependente de opióides que simulava os quadros para recrber dolantina.Simulação ou exames que não dão nada ou paciente chato=chame o psiquiatra.
Conversando com o paciente,vi que ele era alcoolista,que estava no início de uma síndrome de abstinência,que nunca tinha tido contato com opióides até entrar no PS.
Sugeri ao colega a pesquisa de pancreatite ou doença dispéptica.
Por que o colega não tinha pensado nisso?Não coloco em dúvida sua competência.No entanto,mesmo para a apreensão do quadro clínico na sala de emergência,não há como prescindir do contato humano,no mínimo para saber o que aconteceu com aquela pessoa até chegar aquela situação,ainda que seja através de um familiar.
Imaginemos então a situação de um paciente que busca o atendimento médico na procura de ajuda para diminuir um sentimento de angústia.Ele chega e é atendido por um profissional que fica de costas para ele,faz algumas perguntas enquanto digita num teclado,e lhe responde com uma receita nem mesmo escrita por sua mão,mas impressa pelo computador.Desesperador,não?
Mas a situação é grave não so na ausência de contato humano com os pacientes:o médico está perdendo contato consigo mesmo,com seu corpo,sua saúde,seus afetos.
Tenho tido contato com vários colegas que percebem um problema de saúde quando já avançado."Achei que não era nada,a vida da gente é tão corrida ,não quis fazer o exame,vai que dá alguma coisa,né?"
Sem falar na ausência de contato interpessoal:os dormitóros médicos são silenciosos,ninguém conversa:cada um com seu Smartphone,seu Tablet,seu Notebook

domingo, 7 de agosto de 2011

Dessacralizando práticas artrosadas-continuação

Proponho aqui dois eixos de concepção da idéia de saúde-doença.
Primeiro,o eixo que inclui o tipo de intervenção.
Nesse eixo,falamos de três perspectivas:saúde como ausência de alterações nos funcionamentos corporais,saúde como ausência de sofrimento e saúde como conexão do sujeito às suas potencialidades.
Saúde como normalidade das funções biológicas:essa é a perspectiva dos chamados "check-ups",as investigações laboratoriais "preventivas",que garantiriam uma vigilância sobre processos de doença ainda nascentes,ou ainda ignorados,mas já trazendo perigo.A saúde como paraíso perdido da homeostase,que por se conformar perfeitamente ao corpo natural,garantirá a ausência de doença e a evitação do sofrimento.
Saúde como ausência de sofrimento:o estado natural do ser humano seria uma eterna bem aventurança;todos em paz ,nenhuma dor,impotência ou envelhecimento à vista.Lógica que sustenta  enorme complexo econômico,que inclui de antidepressivos mau prescritos à lipoaspiração,cirurgias cosméticas e viagra.
Saúde como conexão com as potencialidades:o que se procura aqui não é homeostase ou eutimia paradisíaca,mas produção de articulações do sujeito com formas de exercício de potencia,já familiares a ele ou não.Novas significações da corporalidade a partir de lógicas de fruição,e não de acomodação a ideais platônicos-midiáticos.Conhecer os sonhos do corpo.Sensibilizações para novas erogeneidades.Novas articulações intersubjetivas:o esquizo não mais embalador de pacotes de supermercado,o esquizo fazedor de tarefas possíveis,da idéia e prática de novos fazeres.
Outro eixo de perspectiva:os esquizo não como
quem tem que aprender a existir num mundo que acreditamos que é o real(que de resto não existe),mas como protagonistas(como nós das configurações neuróticas)de experimentações de dispositivos de interpretação do sofrimento,do amor,da morte,da sexualidade,da lógica capitalista.Sem a idealização dos loucos profetas,loucos santos,loucos produto de incorporações ideológicas.Há algo nos esquizo ,nos autistas,nos paranóicos,além de uma indigência freak.Acompanhá-los em seus momento de crise,com os recursos que tivermos na mão(medicação adequada,psicoterapia,futebol) é só o começo desse empreendimento.
Como essas imprecações se relacionam com o trabalho nos Caps ?Não perca o próximo capítulo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

CAPS:dessacralizando práticas artrosadas

Nas minhas andanças por vários CAPS(crianças,adultos psicóticos,dependentes químicos)vai se confirmando uma antiga hipótese:a palavra CAPS,como "psicose","cidadania",manicômio","anti-manicômio",e outras,sofreram rápidamente uma incorporação pelas formas hegemônicas de discurso.De sorte que não querem dizer mais nada.Repetidas vezes tenho conversado sobre isso com o pessoal que trabalha nesses dispositivos,saindo sempre com a impressão entre cômica e trágica de que ninguém sabe ao certo o que está fazendo.
O que acontece?Muitos desses profissionais são dedicados,interessam-se o suficiente pelo seu trabalho a ponto de fazer supervisôes clínicas custeadas com dificuldade,ou cursos de extensão em psicopatologia,ou psicanálise,ou saúde pública,ou outra de inúmeras tentativas de validar a própria perplexidade apelando ao velho colo institucional.Portanto,esse efeito estupefaciente de palavras sagradas que ninguém sabe o que querem dizer.não se explica de forma simples como deficiências na formação,complexidade crescente dos desafios da clínica(o que é verdade).
Penso que o primeiro passo poderia ser lembrar que apesar dos cartesianos discursos dos administradores do estado,ou da beleza quase evangélica das cartilhas do Ministério da Saúde,na sua ingenuidade e clareza esquemática,geralmente quem faz as cartilhas não é quem atende nos aparatos do estado,ou fez isso há tanto tempo que já não se lembra mais de como era.E ao lermos esses manuais ficamos com a impressão de que quem os escreveu tentou fazer como na passagem bíblica onde Deus criou o mundo:ele dizia faça-se e a coisa aparecia pronta.Da mesma forma:façam-se os Caps.Façam-se os grupos com os familiares.Façam-se a aderência ao tratamento.Façam-se a ambiência,o profissional de referência,o projeto terapêutico singular,a transdisciplinaridade.E faça-se a cara de que todos sabemos do que estamos falando;afinal,as palavras sagradas são tabu,e perguntar pode ser mal interpretado como  questionar,e questionar ser visto como confrontar,e...temos todos nossas contas pra pagar no final do mês.
Aí encontramos um mecanismo muito eficiente de esterilizar completamente qualquer idéia nova:transformemo-la em conceito canônico,em palavra de ordem,em senha que repitamos indefinidamente até embotarmos nossa capacidade de duvidar.
Proponho o início de uma dessacralização:vamos conversar sobre essas palavras ,idéias.Vamos correr o risco de descobrir que algumas não se adequam mais,outras são potentes se articuladas novamente com alguma virulência.Vamos começar com algumas conversas sobre o que chamamos de saúde,e portanto doença,e portanto tratamento.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

O Arquétipo imaginário da sagrada família:repercussões clínicas

Há alguns anos venho realizando,dentro do contexto terapêutico dos CAPS,grupos para os quais dei o nome de "grupos de Religião".Nestes grupos tento utilizar as narrativas subjetivas de experiências religiosas como objeto transicional e catalizador de interlocução junto a pacientes psicóticos,na maioria das vezes com o diagnóstico de esquizofrenia.
O material que vai se configurando nesses encontros é de uma riqueza imensa,tanto em pistas para pensar a terapêutica dessas pessoas,como para estudar a incidência dos arquétipos imaginários veiculados na cultura a partir das várias denominações religiosas trazidas pelos membros dos  grupos
Hoje gostaria de começar a trabalhar sobre um tema que pretendo continuar desenvolvendo aqui no blog(na minha lentidão habitual).Falo do arquétipo imaginário(usando essa noção como enunciada por Gilbert Duran) da sagrada família(Espírito Santo,José,Maria,Jesus).
Nessa estrutura narrativa,o homem mais perfeito que já existiu nasce apenas de uma mulher,sem contato sexual com um homem.Nasce como o  resultado de um chamado divino dirigido a uma mulher diferente de todas as outras,escolhida entre todas as outras.Esse chamado se substancializa na fecundação do corpo dessa mulher pelo espírito santo,força constitutiva do poder de Deus.
O pai humano não é positivamente um pai,mas um fantasma de homem coma função de cuidar desse filho especial.
Observo ao longo desses grupos dois momentos de recitação desse mesmo enunciado.Num primeiro momento,fala-se da história como parte da tradição,"como está na bíblia " ou como o padre/pastor falou.Nesse momento o relato já é um relato interpretativo,a meio caminho do imaginário do narrador e do discurso institucional.(como de resto qualquer relato).Prosseguindo,surgem as narrativas míticas das histórias das próprias famílias,que vão desenrolar o tema nas mesmas estruturas:o chamado para uma missão especial,no início do delírio,o pai que nunca é pai,mas um acidente na constituição desse escolhido,a mãe que vê brotar de si o corpo do escolhido sem a interferência do corpo paterno.E o escolhido incoompreendido que no  final será assassinado pelos "outros",que invejosos por não possuírem os atributos do escolhido vão lhe armar eternas emboscadas.
Acredito que não podemos estimar a força e as consequências  da implantação desse enunciado cultural na formação da subjetividade com a qual lidamos em nossa prática clínica,e mesmo nos fluxos subjetivos "normais"do social.
Afinemos pois as orelhas,soltemos as amarras de nossa vida mental,e partamos para essas novas jornadas da estruturação de nosso saber clínico.
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