tigres

tigres

domingo, 12 de setembro de 2010

Gaya

“A principal idéia que este estudo da agressão veicula é que, se a sociedade está em perigo, a razão disso não se encontra na agressividade do homem mas na repressão daGaya: Ensaio genealógico - clinico de um caso de invisibilidade

agressividade do homem mas na repressão da agressividade pessoal nos indivíd agressividade do homem mas na repressão da agressividade pessoal nos indivíduos”.





D. W. Winnicott, 1950, “Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional”.



Maurício Garrote

mostrar detalhes 9 set (3 dias atrás)



OU seja:os vampiros "atuais"negam:as figuras da morte,as figuras do

morto como raivoso e invejoso,e a figura de uma forma de vida que é só

corpo,que vive,anda e goza sem precisar de alma,e sem temer o inferno





Maurício Garrote

mostrar detalhes 9 set (3 dias atrás)



OU seja:os vampiros "atuais"negam:as figuras da morte,as figuras do

morto como raivoso e invejoso,e a figura de uma forma de vida que é só

corpo,que vive,anda e goza sem precisar de alma,e sem temer o inferno

































Dedicado à Patrícia Almeida e

Todos os analistas “saídos” das

instituições por escutarem e

falarem demais

Hoje é uma segunda feira cinzenta. Estou no inicio da manhã (por volta das 08:00) na instituição para cuidados de crianças (até 14 anos) numa região característica da favela/periferia de São Paulo. Esta instituição é um braço de uma grande organização social da periferia, mantida há anos pela igreja (junto a parceria com prefeitura, estado, empresas e outros).

Esta descrição de alguma coisa grande, ampla, não bate com a cara do lugar. É uma casa pequena um sobrado com outros cômodos que se empilham no fundo, um lugar apertado onde eu sempre me surpreendia com uma nova porta que dava para um outro corredor com outras salas. O único lugar um pouco maior (do tamanho de uma cozinha grande de casa antiga) é o refeitório, onde estou agora junto com as vinte e sete crianças que estão morando no abrigo (é como todos aqui chamam essa instituição) nesse momento. É hora do café da manhã, as crianças segurando aquelas canecas de plástico coloridas e os pães com manteiga que todo mundo conhece.

Essa é minha terceira semana, e as minhas doze horas por semana (quatro horas três vezes por semana) já permitiram que em mim se sedimentassem alguns traços das crianças e dos funcionários (uma coordenadora, assistente social, uma enfermeira e três monitoras, cada período de doze horas).

Sou um médico fazendo a função de trabalhar com aspectos da Saúde Mental das crianças. Essa tarefa foi justificada pela coordenação da organização e pelo padre – também da administração – na entrevista de seleção para o cargo. Na entrevista fui informado que as crianças tinham sido encaminhadas pelo conselho tutelar local – eram filhos e filhas de mães que vinham sofrendo violência domestica, ou elas próprias vinham sofrendo esse tipo de violência.

Citei na seleção que além de psiquiatra era psicanalista, o que definia a princípio certos referenciais éticos na minha prática clínica. Esta parte do meu discurso foi completamente ignorada. Sabia medicar crianças, sim, respondi. Já tinha trabalhado na periferia, sim, nos últimos vinte anos, sim, essa resposta agradou.

Sendo assim aqui estou eu no refeitório, entre vinte e sete meninos e meninas. As monitoras não sentam, ficam de pé, por trás das crianças e de mim. A maior parte das crianças me pergunta coisas ou fala de algum sintoma físico, pedindo remédio (dor de barriga, ferida na perna, coceira na cabeça).

No meio das crianças está ela, a pequena menina sem nome, da qual vou me ocupar principalmente nesse relato. Para falar dela me sirvo antes de um exibicionismo técnico sobre a transferência ou contratransferência, do aforismo de Nietzche.

“O que é então o próximo? – Que compreendemos de nosso próximo, senão suas fronteiras, quero dizer, aquilo com que ele se inscreve e se imprime em nós e sobre nós? Nada compreendemos dele, senão as mudanças em nós que são por ele causadas – nosso conhecimento dele semelha um espaço oco a que se deu uma forma. Nós lhe atribuímos as sensações que os seus atos despertam em nós, dando-lhe, assim, uma falsa positividade inversa. Nós os construímos segundo o que sabemos de nós, dele fazendo um satélite de nosso próprio sistema : e, quando ele nos ilumina ou se escurece, e somos a causa ultima de ambas as coisas – nós acreditamos o contrario! Mundo de fantasmas, este em que vivemos! Mundo invertido, virado, vazio, e no entanto sonhado cheio e reto!”



F. Nietzsche, Aurora, ........... 118.



Fique claro portanto, que me limitarei a falar da menina sem nome em mim, por mais que isso ofenda qualquer assepsia da abstinência analítica ou de um desejo “objetivamente” do pesquisador social.

Ninguém nunca falava da menina sem nome, mas ela estava sempre lá, entre as outras crianças. Fosse nas refeições, ou nas brincadeiras, ela fazia parte do grupo, apesar do grupo parecer não enxergá-la. Na hora de escolher quem era da equipe de quem, ela era sempre a ultima: não se lembrava dela como possível companheira. Os meninos falavam das meninas, umas chatas, outras bonitas, mas nunca dela. Era como se a menina sem nome fosse quase um equipamento institucional: brincava, nunca brigava ou reclamava, conversava com as outras crianças e as tias (as monitoras). Suas respostas eram sempre adequadas, falava obrigado e por favor sempre. Ou seja, a menina sem nome era o exemplo.

Era como as monitoras me falavam dela. Um exemplo! Tinha dez anos, mas era “muito madura”, sabia entender quando uma criança menor pegava seu brinquedo, não brigava, sabia dar a vez para a outra criança que estava precisando mais de ir no banheiro. Dava gosto! “Seu nome... Ah! Esqueci! Como é mesmo o nome dela, gente?

Diz a tradição cabalística que a alma, antes de nascer na Terra, traz em sua memória todo o conhecimento universal. Por ocasião de seu nascimento, Deus lhe dá o seu nome e, colocando o dedo sobre seus lábios, faz a advertência shhh (Psiu...) E a alma vem à luz sem lembrar de nada.

Bem, talvez a menina sem nome não tivesse passado por essa parte, será então que ela não tinha sido destruída da memória sobre tudo o que existe? O que será que ela insistia em recordar?

O nome da menina era Gaya. Ela me contou, assim, sem muito interesse. Eu a havia conhecido no dia que me chamaram “com urgência” – eu estava em outra das infinitas salas – para atender Gaya, que estava tendo “uma convulsão”.

Do ponto de vista médico, era evidente não se tratar de uma convulsão epiléptica, (nem parcial complexa, nem generalizada). Gaya estava hipnotizada por si mesma: olhos bem abertos, sentada no chão, oscilava com o corpo para frente e para trás, contando a história de uma menina que ao nascer deixou a mãe muito triste – no meio da história gritava “Mata ela! Mata ela! Eu quero que mate ela!” Após isso adormeceu, dormindo por duas horas.

Ora, parece que de algum jeito já estavam “matando ela” – ela não tinha nome. Ela conseguia, com sua perfeita correspondência ao desejo institucional, se tornar invisível. Me lembro de Celso Athayde e M V Bill.

“Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível!!”... Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito.

“Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo: tudo o que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos.” Ou : “o preconceito provoca invisibilidade na medida que projeta sobre a pessoa um estigma que a anula, a esmaga e a substitui por uma imagem caricata, que nada tem a ver com ela, mas expressa bem as limitações internas de quem projeta o preconceito. Por isso seria possível dizer que o preconceito fala mais de quem o enuncia ou projeta do que do quem o sofre, ainda que, por vezes, sofrê-lo deixa marcas”



(Luiz E. Soares, M V Bill e Celso Athayde – CABEÇA DE PORCO)



O que o preconceito, ou a caricatura de Gaya, veiculado pelas monitoras ou pela própria crise convulsiva dizia da instituição ou da família de Gaya?

Conversei com a mãe de Gaya, Samanta, na sala de seu barraco na área pública (outro nome para favela) que envolvia como um mar a organizada e estável ilha da organização onde eu vinha trabalhando.

Já no começo da conversa perguntou se dava pra eu dar uma receita de Fluxetina e uma de Diazepam, o médico do posto de saúde próximo tinha ido embora (que surpresa!) e ela estava precisando, estava muito nervosa.

O que a deixava tão nervosa? O Bili, pai da Gaya, era usuário de crack. Não que fosse bandido ou trabalhasse no tráfico, mas acabava queimando tudo o que ganhava trabalhando de frentista “nas pedra” – e chegava o salário, Bili sumia dois, três dias, voltava seco, cara chupada, “só o pó”. O que salvava era que Samanta fazia uns bicos de doméstica, tirava algum para por comida na mesa. Hoje era sua manhã de folga.

Me ofereceu um café bem doce. A preocupação dela era com a menina – quase perdeu ela – sangrou no ultimo mês – mas a patroa deu uma força, conseguiram vaga no SUS, ela ficou deitada dois meses e a menina nasceu – foi a patroa que deu esse nome de Gaya, até no nome a menina ficou estranha.

Só que depois que a menina nasceu ela ficou louca da cabeça – falava coisa com coisa, não queria tomar banho nem comer – pensava até em fazer coisa ruim com a criança. Não deixaram ela sair do hospital – foi para o hospital de maluco enquanto Gaya ficou com a patroa – o Bili tinha sumido, pirou.

Quando voltou não conseguia nem tomar banho sózinha – os remédios deixaram ela dura, ela até babava. Olhava para a menina ali, coitadinha, uma criaturinha de Deus – mas ela, mãe, parecia inválida, às vezes até se mijava. Dentro dela tudo vazio: não queria TV, não queria comer, nem a cesta básica que a patroa trazia. A patroa insistia pra ela pegar a criança, ela pegava, mas, sabe, era como se pegasse um pedaço de pau. Ela tão bonitinha! E a mãe aquele traste. O Bili deu de ficar mais louco – batia na mulher quando chegava chapado, gritava que ela agora não prestava mais pra nada, nem pra foder. Nem pra foder.

Quando o conselho tutelar veio (a vizinha falou que a criança gritava a noite toda) descobriu as marcas de queimadura de cigarro nas costas da menina. A mãe foi pro hospital de maluco, perdeu a guarda da menina, a menina foi pro abrigo, sei lá, faz tempo que não vejo.

Saí do barraco e olhei aquele cenário imutável da periferia: um combate sangrento entre forças – potências buscando mais potência, o que na periferia queria dizer: sobreviver. Na viela do barraco da mãe de Gaya apareciam três cadáveres por semana. Tiros na cara, se tinham dedurado o chefão da boca de fumo, tiros na bunda, se não tinham pagado.

A vida banalizada na carne morta na porta do barraco ou imersa no esgoto a céu aberto, o cenário dos primeiros anos de vida de Gaya, além da mãe deprimida e espancada pelo pai. Bili louco com as pedras, empinando pipa e usando bermuda, “só na brisa”

Estou na reunião de equipe. Só mulheres, todas muito caridosas, orgulhosas de sua contribuição para tornar o mundo melhor.

Falo da história de Gaya: a depressão da mãe, o desejo de que a filha morresse, a tortura com as queimaduras de cigarro, todo o ódio sentido pela criança que não pôde se atrever nem a ser criança, transformada em mini adulta, sem lugar para ficar com raiva. A raiva hoje aparece na descarga motora das convulsões, na tragédia novamente representada onde entra no lugar da mãe e grita para que matem aquela criança.

Escândalo geral. Desconforto entre as monitoras. “Por que conversar justo sobre a Gaya? Ela é um exemplo, é uma das melhores crianças!”

Quem nos dera todas as crianças fossem Gayas, educadas, gratas, limpinhas!

Percebi que minha ultima chance era recorrer à autoridade de um discurso técnico. Lembrando do texto “Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional”, de São Winnicott no “da Pediatria à Psicanálise”, engatei uma primeira e tentei:

Quando a criança é bem pequena, logo ao nascer, ela tem alguns comportamentos dirigidos à mãe que podemos ver como agressivos – a criança, em fases de excitação, morde o mamilo da mãe, bate nela, solta gases – no entanto nessa fase a criança ainda não reconhece que a mãe agredida nos momentos de excitação é a mesma que ela acaricia em momentos de um amor mais apaziguado, de satisfação pulsional. Winnicott chama essa fase de fase da crueldade ou “ruthlessness”, onde a criança ainda não integrou dentro de si as “duas mães”, a agredida e a que recebe carinho.

No entanto, se a mãe mantém-se presente, viva na relação com a criança, esta passa a integrar as “duas mães” numa única, passando a desenvolver uma preocupação e uma culpa em relação à mãe, o que dará origem ao impulso de cuidar da mãe , a capacidade de amar.

Claro que não falamos aqui de uma compaixão do bebê pela mãe, mas de um estado de simbiose tal entre a dupla mãe – bebê que faz com que a criança sofra ao perceber o sofrimento da mãe.

Se a mãe não reconhece o impulso da criança para a reparação , ou se aparece para a criança como sempre ferida, machucada, machucada, deprimida, as fantasias de estar destruindo a mãe e a ameaça à própria existência advindas dessa fantasia (sem mãe não há bebê), a criança vai construir mecanismos preventivos de manifestação de agressividade, como tornar-se cada vez mais adaptada ao desejo dos adultos.

Imaginemos um bebê que tenha vivido em escala monstruosa a ameaça da mãe sucumbir aos seus ataques (por uma intensidade pulsional desmesurada ou por uma mãe deprimida). Esse bebê desenvolverá mecanismos de monitorização constante do bem estar da mãe (medido, por exemplo, pelo carinho que a mãe lhe dispensa).

Na melhor das hipóteses, esse bebê se tornará alguém cuja neurose lhe possibilita um talento; um médico, um psicólogo, um assistente social, etc. Na pior, vai se tornar a menina sem nome, a menina invisível, Gaya.

Na reunião da equipe, após três meses de seis, de forma “pesarosa”, “contrita”, “profissional”, a coordenadora da equipe me comunicou que meus serviços já não eram necessários naquela instituição. Meus conhecimentos técnicos “avançados” eram demais para as pessoas simples que eram as monitoras, e uma má interpretação do que eu falava podia levar a idéias perigosas como a possibilidade da criança ter raiva da mãe, ou mesmo da mãe desejar matar seu filho.

Hoje guardo uma lembrança boa de Gaya. Em atendimento que usei a técnica da narrativa, ela me contou uma história de uma menina que freqüentava um cemitério. Com um lápis ela se encarregava de escrever nas lápides o nome de quem havia morrido (as lápides estavam apagadas) e assim agora podia separar os nomes dos vivos dos nomes dos mortos.

Entre os dos vivos, encabeçando a lista, claro, Gaya.

Nenhum comentário:

Postar um comentário