tigres

tigres

domingo, 7 de outubro de 2012

quis o fado movente
que fôssemos paridos pela metade
e que onde os outros encontrassem sossego
nós procurássemos pistas de tempestade
filhos da tempestade

Odysseus

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Ethos guerreiro e decisão

Conta a Ilíada que durante a Guerra de Tróia Aquiles,um dos guerreiros mais importantes da Grécia,retirou-se da batalha devido a um desentendimento com o chefe do exército grego,Agamemnon.
Nesse desentendimento Aquiles  tinha se sentido desconsiderado,menosprezado em sua importância.Devido a um castigo que caía sobre os gregos,uma peste que dizimava homens e animais,vingança de Apolo,os gregos foram obrigados a devolver a filha de um sacerdote daquele deus aos troianos.Justamente a donzela que era o despojo de guerra principal entre os conquistados por Aquiles.O herói enfureceu-se por ter de abrir mão de sua conquista,sendo que outros chefes,como o próprio Agamemnon,não teriam de passar por isso.
Levando em conta sua importância no confronto,suas habilidades e sua ascendência divina,Aquiles se viu tratado com injustiça pelos chefes gregos.Assim,retirou-se do combate,passando a observar o andamento da guerra d longe,d dentro de suas tendas armadas na praia ao lado de seus muitos barcos.
Não seriam poucos os companheiros que perderiam suas vidas devido à ausência de Aquiles.Essa situação é narrada na Ilíada sob o título"A ira de Aquiles".
Várias foram as comitivas enviadas pelos gregos na tentativa de demover o herói dessa posição,tais os estragos que vinham se abalando sobre as fileiras gregas nesse intervalo.Inicia-se aí um diálogo de Aquiles consigo mesmo na tentativa de ponderar sobre os acontecidos na guerra até então e outros provindos de sua história anterior a essa guerra.
Sabia que podia voltar as costas aos gregos,e comseus navios repletos dos despojos conquistados até então voltar para sua pátria.Lá seria recebido junto a seus pares com honras dignas de seu valor,dignas de um deus.Seu nome seria cantado,seus feitos recordados.Teria inúmeras esposas e filhos,viveria ua vida longa e tranquila,desfrutando de uma velhice doce e mansa até a hora de descer ao Hades.
Podia também embrenhar-se novamente nas veredas da guerra;submeter à sua espada os exércitos ferozes de Heitor e Páris,conquistar a cidade de Tróia,evitando a morte de mais companheiros.Com a vitória dos gregos sua fama cresceria mais ainda,seu nome passando a ser o outro nome da coragem,do ethos guerreiro,da virtude e da glória daquele que nunca foge do inimigo.Sabia no entanto,por meios divinos,proféticos,que essa escolha lhe traria a morte certeira em breve,jogando-o d forma violenta ao Hades.Sombra sem carne,para sempre apartado do convívio dos mortais.Entre eles,seu nome agora seria um nome,uma lenda,cantado de bocas para ouvidos até o fim do tempo.
A Ilíada conta que Aquiles voltou ao combate,após seu amado Pátroclo ter sido morto por engano por Heitor.
Será que o sentido dessa decisão se esgota na ira pela morte do amado,no pathos sanguíneo que busca a vingança imediata pelo agravo de dor tão intensa?Nietzsche afirma que o pior que pode acontecer a alguém é ser apartado de sua própria potência.Ver abortado o seu vir a ser,ver desvanecer-se com o sonho,na chegada da manhã e do despertar,o rosto do si-mesmo que sua alma preparava-se para parir e acalentar,o rosto de quem se é.
Aquiles decidiu-se por ir ao encontro do seu si-mesmo mais próprio,seu único,finito, mortal si-mesmo.Sua humana potência,toda glória e toda finitude.Seu nome chama agora a figura da coragem,mas também da decisão.
Decisão como o ato fundante do si-mesmo,revelador de sua coragem de forma absolutamente singular,fugaz como as flores que as grossas gotas da tempestade fazem brotar do asfalto.Infinito e indestrutível como elas.

domingo, 1 de janeiro de 2012

A Decisão de Aquiles

A Ilíada conta que após ser instado por seus companheiros a voltar a participar da batalha,Aquiles se recolheu na sua última solidão refletindo nas escolhas possíveis.
Por um lado,sabia que poderia se recusar a voltar a lutar,e com os abundantes despojos já acumulados nos seus anos de guerra,voltar ao seu reino,onde o aguardaria uma vida longa,com muitos filhos e anos de narrativas dos seusfeitos pelos seus súditos.
Por outro lado,sabia também que voltar a guerrear ao lado dos gregos era o que de mais próprioo seu destino lhe propunha;sua coragem(core:núcleo,o mais íntimo ),sua potência transformando-se em ato.A morte prematura não o assustava:ao apropriar-se de sua vida,faria dela BIOS,a vida para além do seu substrato natural.ZOE.E seu BIOS transcenderia seu tempo mundano ,entrando para o TEMPO como horizonte eterno para o humano,na coragemúltima e definitiva de ser o que ele é.
E´fácil reconhecer aqui o mesmomomento eternizado por Kazantzakis na Ultima Tentação de Cristo;na sua solidãona cruz,Jesus vive um trecho do que seria sua vida caso sua decisão não fosse a de encarnar o Cristo,cedendo ao chamado de Deus.
Nietzsche dizia que o pior que pode acontecer a um homem é ser separado de sua potência.
De dentro de nosso destino ela nos olha,nossa decisão mais autêntica,nossa coragem,o ato onde nos tornamos nós mesmos."Changes,strange fascination past anything"(Bowie).Que Hermes,Dioniso e o Crucificado estejam conosco na hora supprema de tomarmos-la pela mão,para que o Ano   possa ser Novo!

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Os medicos estão passando por um processo de "autistização"

Nas minhas diuturnas caminhadas pelas veredas das práticas de saúde(em Pronto Socorros,UBS,CAPS),mesmo na função docente junto a Residentes Médicos,um fenõmeno tem me alarmado:a transformação do ato médico de encontro humano em acontecimento burocrático,algo assim como quando você vai em alguma repartição para carimbar um documento,ou passa pelo  caixa do supermercado para pagar.
O médico hoje não olha para o paciente.Durante a consulta,passa dados para um computador,enquanto o "cliente" se queixa.Ao final do processo,aperta o botão de imprimir e entrega uma receita e um pedido de exame.
Tenho ouvido colegas (da minha idade e mais novos)afirmando que preferem trabalhar em Medicina de Urgência porque"não tem que ouvir história,não tem que aguentar família"."No Pronto Socorro e pápum tem que entubar,desfibrilar,é tudo procedimento que vem em algoritmos,é simou não."
Será?Recentemente me pediram para avaliar um paciente que vinha dando entrada no PS há quatro dias com dor precordial:"os exames não davam nada",então foi proposta a hipótese de que se tratava de u dependente de opióides que simulava os quadros para recrber dolantina.Simulação ou exames que não dão nada ou paciente chato=chame o psiquiatra.
Conversando com o paciente,vi que ele era alcoolista,que estava no início de uma síndrome de abstinência,que nunca tinha tido contato com opióides até entrar no PS.
Sugeri ao colega a pesquisa de pancreatite ou doença dispéptica.
Por que o colega não tinha pensado nisso?Não coloco em dúvida sua competência.No entanto,mesmo para a apreensão do quadro clínico na sala de emergência,não há como prescindir do contato humano,no mínimo para saber o que aconteceu com aquela pessoa até chegar aquela situação,ainda que seja através de um familiar.
Imaginemos então a situação de um paciente que busca o atendimento médico na procura de ajuda para diminuir um sentimento de angústia.Ele chega e é atendido por um profissional que fica de costas para ele,faz algumas perguntas enquanto digita num teclado,e lhe responde com uma receita nem mesmo escrita por sua mão,mas impressa pelo computador.Desesperador,não?
Mas a situação é grave não so na ausência de contato humano com os pacientes:o médico está perdendo contato consigo mesmo,com seu corpo,sua saúde,seus afetos.
Tenho tido contato com vários colegas que percebem um problema de saúde quando já avançado."Achei que não era nada,a vida da gente é tão corrida ,não quis fazer o exame,vai que dá alguma coisa,né?"
Sem falar na ausência de contato interpessoal:os dormitóros médicos são silenciosos,ninguém conversa:cada um com seu Smartphone,seu Tablet,seu Notebook

domingo, 7 de agosto de 2011

Dessacralizando práticas artrosadas-continuação

Proponho aqui dois eixos de concepção da idéia de saúde-doença.
Primeiro,o eixo que inclui o tipo de intervenção.
Nesse eixo,falamos de três perspectivas:saúde como ausência de alterações nos funcionamentos corporais,saúde como ausência de sofrimento e saúde como conexão do sujeito às suas potencialidades.
Saúde como normalidade das funções biológicas:essa é a perspectiva dos chamados "check-ups",as investigações laboratoriais "preventivas",que garantiriam uma vigilância sobre processos de doença ainda nascentes,ou ainda ignorados,mas já trazendo perigo.A saúde como paraíso perdido da homeostase,que por se conformar perfeitamente ao corpo natural,garantirá a ausência de doença e a evitação do sofrimento.
Saúde como ausência de sofrimento:o estado natural do ser humano seria uma eterna bem aventurança;todos em paz ,nenhuma dor,impotência ou envelhecimento à vista.Lógica que sustenta  enorme complexo econômico,que inclui de antidepressivos mau prescritos à lipoaspiração,cirurgias cosméticas e viagra.
Saúde como conexão com as potencialidades:o que se procura aqui não é homeostase ou eutimia paradisíaca,mas produção de articulações do sujeito com formas de exercício de potencia,já familiares a ele ou não.Novas significações da corporalidade a partir de lógicas de fruição,e não de acomodação a ideais platônicos-midiáticos.Conhecer os sonhos do corpo.Sensibilizações para novas erogeneidades.Novas articulações intersubjetivas:o esquizo não mais embalador de pacotes de supermercado,o esquizo fazedor de tarefas possíveis,da idéia e prática de novos fazeres.
Outro eixo de perspectiva:os esquizo não como
quem tem que aprender a existir num mundo que acreditamos que é o real(que de resto não existe),mas como protagonistas(como nós das configurações neuróticas)de experimentações de dispositivos de interpretação do sofrimento,do amor,da morte,da sexualidade,da lógica capitalista.Sem a idealização dos loucos profetas,loucos santos,loucos produto de incorporações ideológicas.Há algo nos esquizo ,nos autistas,nos paranóicos,além de uma indigência freak.Acompanhá-los em seus momento de crise,com os recursos que tivermos na mão(medicação adequada,psicoterapia,futebol) é só o começo desse empreendimento.
Como essas imprecações se relacionam com o trabalho nos Caps ?Não perca o próximo capítulo.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

CAPS:dessacralizando práticas artrosadas

Nas minhas andanças por vários CAPS(crianças,adultos psicóticos,dependentes químicos)vai se confirmando uma antiga hipótese:a palavra CAPS,como "psicose","cidadania",manicômio","anti-manicômio",e outras,sofreram rápidamente uma incorporação pelas formas hegemônicas de discurso.De sorte que não querem dizer mais nada.Repetidas vezes tenho conversado sobre isso com o pessoal que trabalha nesses dispositivos,saindo sempre com a impressão entre cômica e trágica de que ninguém sabe ao certo o que está fazendo.
O que acontece?Muitos desses profissionais são dedicados,interessam-se o suficiente pelo seu trabalho a ponto de fazer supervisôes clínicas custeadas com dificuldade,ou cursos de extensão em psicopatologia,ou psicanálise,ou saúde pública,ou outra de inúmeras tentativas de validar a própria perplexidade apelando ao velho colo institucional.Portanto,esse efeito estupefaciente de palavras sagradas que ninguém sabe o que querem dizer.não se explica de forma simples como deficiências na formação,complexidade crescente dos desafios da clínica(o que é verdade).
Penso que o primeiro passo poderia ser lembrar que apesar dos cartesianos discursos dos administradores do estado,ou da beleza quase evangélica das cartilhas do Ministério da Saúde,na sua ingenuidade e clareza esquemática,geralmente quem faz as cartilhas não é quem atende nos aparatos do estado,ou fez isso há tanto tempo que já não se lembra mais de como era.E ao lermos esses manuais ficamos com a impressão de que quem os escreveu tentou fazer como na passagem bíblica onde Deus criou o mundo:ele dizia faça-se e a coisa aparecia pronta.Da mesma forma:façam-se os Caps.Façam-se os grupos com os familiares.Façam-se a aderência ao tratamento.Façam-se a ambiência,o profissional de referência,o projeto terapêutico singular,a transdisciplinaridade.E faça-se a cara de que todos sabemos do que estamos falando;afinal,as palavras sagradas são tabu,e perguntar pode ser mal interpretado como  questionar,e questionar ser visto como confrontar,e...temos todos nossas contas pra pagar no final do mês.
Aí encontramos um mecanismo muito eficiente de esterilizar completamente qualquer idéia nova:transformemo-la em conceito canônico,em palavra de ordem,em senha que repitamos indefinidamente até embotarmos nossa capacidade de duvidar.
Proponho o início de uma dessacralização:vamos conversar sobre essas palavras ,idéias.Vamos correr o risco de descobrir que algumas não se adequam mais,outras são potentes se articuladas novamente com alguma virulência.Vamos começar com algumas conversas sobre o que chamamos de saúde,e portanto doença,e portanto tratamento.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

O Arquétipo imaginário da sagrada família:repercussões clínicas

Há alguns anos venho realizando,dentro do contexto terapêutico dos CAPS,grupos para os quais dei o nome de "grupos de Religião".Nestes grupos tento utilizar as narrativas subjetivas de experiências religiosas como objeto transicional e catalizador de interlocução junto a pacientes psicóticos,na maioria das vezes com o diagnóstico de esquizofrenia.
O material que vai se configurando nesses encontros é de uma riqueza imensa,tanto em pistas para pensar a terapêutica dessas pessoas,como para estudar a incidência dos arquétipos imaginários veiculados na cultura a partir das várias denominações religiosas trazidas pelos membros dos  grupos
Hoje gostaria de começar a trabalhar sobre um tema que pretendo continuar desenvolvendo aqui no blog(na minha lentidão habitual).Falo do arquétipo imaginário(usando essa noção como enunciada por Gilbert Duran) da sagrada família(Espírito Santo,José,Maria,Jesus).
Nessa estrutura narrativa,o homem mais perfeito que já existiu nasce apenas de uma mulher,sem contato sexual com um homem.Nasce como o  resultado de um chamado divino dirigido a uma mulher diferente de todas as outras,escolhida entre todas as outras.Esse chamado se substancializa na fecundação do corpo dessa mulher pelo espírito santo,força constitutiva do poder de Deus.
O pai humano não é positivamente um pai,mas um fantasma de homem coma função de cuidar desse filho especial.
Observo ao longo desses grupos dois momentos de recitação desse mesmo enunciado.Num primeiro momento,fala-se da história como parte da tradição,"como está na bíblia " ou como o padre/pastor falou.Nesse momento o relato já é um relato interpretativo,a meio caminho do imaginário do narrador e do discurso institucional.(como de resto qualquer relato).Prosseguindo,surgem as narrativas míticas das histórias das próprias famílias,que vão desenrolar o tema nas mesmas estruturas:o chamado para uma missão especial,no início do delírio,o pai que nunca é pai,mas um acidente na constituição desse escolhido,a mãe que vê brotar de si o corpo do escolhido sem a interferência do corpo paterno.E o escolhido incoompreendido que no  final será assassinado pelos "outros",que invejosos por não possuírem os atributos do escolhido vão lhe armar eternas emboscadas.
Acredito que não podemos estimar a força e as consequências  da implantação desse enunciado cultural na formação da subjetividade com a qual lidamos em nossa prática clínica,e mesmo nos fluxos subjetivos "normais"do social.
Afinemos pois as orelhas,soltemos as amarras de nossa vida mental,e partamos para essas novas jornadas da estruturação de nosso saber clínico.
  .

domingo, 12 de setembro de 2010

Sobre a tentativa de ser um monstro, e sua relativa impossibilidade

Sobre a tentativa de ser um monstro, e sua relativa impossibilidade


Mauricio Garrote



No filme “Psicopata Americano”, o protagonista passa todo o tempo imerso em construções fantásticas, onde é um assassino em série, praticando a violência com mulheres, colegas de trabalho, prostitutas, sempre sublinhando dois elementos: a tentativa de se dar a conhecer, ser descoberto, e a exibição de uma personalidade definitivamente monstruosa, atestada no caráter caricato (na estética dos filmes “trash”) dos assassinatos que comete.

Nessa construção compulsiva de uma narrativa fantástica de si mesmo, é pungente a angústia com que tenta convencer as pessoas de seu círculo de convivência, como seu advogado, de que é o assassino-monstro; mais até do que isso, o desespero de “ser”, ser enquanto finalmente reconhecido por um outro, num ato supostamente impossível de ignorar. “Ser” um monstro, de-monstrado, desdobrado em uma monstruosidade atestada no dispor ludicamente, como uma criança sádica, do corpo de outras pessoas.

Essa máscara do desespero ontológico da proximidade aterradora do abismo “não ser alguém”, estruturada em teoria como ideal do ego, falso self, ou qualquer figura que se caracteriza justamente por se dizer a partir do que não é, presença esvaziada de uma casca que se dobra sobre si mesma, cercando e protegendo apenas o fato de não ter núcleo, fica tato mais patente no momento cultural presente quanto conquistamos vagarosamente a coragem de olhar para ela.

No filme “O lutador”, (divulgado como a película onde Mickey Rounke voltaria a mostrar o ator que “verdadeiramente é”) o personagem é um lutador de luta livre, ou seja, um ator desse espetáculo que caracteristicamente expressa em tons trágicos, de plasticidade histriônica, as lendas do herói e do vilão, da justiça e da traição, da dor e do poder de produzir a dor em algum outro.

Ao longo da história o personagem sofre um infarto cardíaco, o que lhe incapacita para essas performances acrobáticas no ringue. Reduzido a um caco, um artigo sucateado (em tarefas humilhantes como pesar frios em um balcão de supermercado ou “ser pai” de uma moça que não conhece), o protagonista escolhe morrer em uma ultima exibição, concluindo com a percepção de que “o único lugar onde não se machuca” é o ringue. “The show must go on”, mesmo porque o único existir possível é “to show”, mostrar e ser atestado como existente.

São inúmeras as metáforas (a começar pelo cinema) desse horrível superlativo do “ser para outro”.

No filme “Um estranho vampiro” (Vampire’s kiss), o herói trágico, incapaz de estabelecer relações afetivas, (onde o não ser alguém infalivelmente dói mais), consuma-se em um mundo delirante onde descobre-se vampiro hollywoodiano com tumba, dentões, estaca e tudo.

É interessante notar que algumas instituições catalisam a produção dessas narrativas fantásticas de si, como os albergues, onde o sujeito separa-se de uma história comum (a instituição o “abriga”, “acolhe”, conferindo-lhe instantaneamente um passe para uma “nova vida“, que pode ser completamente distante diversa e até oposta à existência levada até então). “Não interessa quem você é, nós o acolheremos de qualquer maneira” – e esse acolhimento traz em si a maravilhosa oportunidade de uma “construção criativa de si” sem compromisso com os laços de chumbo da história pessoal, familiar, de trabalho e outras.

No entanto, o que acontece no mais das vezes não é eventual fenômeno dionisíaco/carnavalesco da invenção de uma máscara, um gesto lúdico que resgata outra forma de subjetivação, nova, e por isso mais leve, flexível. Longe disso, o que assistimos nesses fenômenos institucionais é a produção em massa de subjetividade “monstruosa”, que no monstruoso busca desesperadamente existir como identidade visível, e visível capitalisticamente, ou seja, rentável. O sujeito solicita à instituição médica infinitos laudos, onde lhe são outorgadas, na forma atestada pela medicina, inúmeras identidades na forma de doenças, que mais do que incapacitantes, constituem a garantia de lugar no processo de produção de bens. O sujeito doença garante renda para as instituições de cuidado, que serão financiadas pelo estado nessa tarefa hospitalar, garante renda para os laboratórios farmacêuticos, como consumidores oficiais de uma ampla gama de medicamentos. Cada “gesto de cuidado” é uma empresa certamente lucrativa: a cada passagem (pelo Pronto Socorro, Posto de Saúde, Hospital) o sujeito gera novo repasse de capital. E de forma coerente, recebe seu pagamento, o “auxílio doença”, o auxílio que mantém na ordem de produção de bens a partir do lugar de doente.

Como se vê, se produz uma articulação perversa entre o desespero de ser outro e a máquina produtora de bens, que te faz outro, ao preço de uma amputação, de um câncer, de uma loucura, de uma infecção que destrói partes do teu corpo, ou seja, infinitas possibilidades de doenças-identidade.

Algumas praticas institucionais garantem que a roda continue girando dessa maneira: o estímulo do descaso pela própria história, travestido de tolerância humanitária, o oferecimento de formas-prontas, pret-a-porter, de fácil encaixe onde o desejo de subjetivação se solidifica em peça motora dos dramas individuais de busca de ser e dos dramas nacionais de produção de riqueza, ou seja, laudos, carteira para deficiente, instalações coletivas asilares.

Como no sonho do morador de rua onde ele percebia aterrorizado que ia ser engolido por uma maquina de fazer salsicha, a possível transgressão de uma história pessoal anquilosada é proveitosamente/lucrativamente incorporada na máquina de produção de riqueza, mesmo o querer não ter nada do homem que “cai na estrada”, “vai correr trecho” é recuperado na figura do indigente oficial, até o ultimo desenlace, não menos trágico, onde seu corpo será o suporte do ensino médico nas aulas de anatomia.

Tratamentos biológicos/Tratamentos psicológicos: novas contribuições a um antigo debate

Mauricio Garrote



Esse texto pretende ser uma tentativa de interpretação genealógica da questão tratamentos biológicos x tratamentos psicodinâmicos na prática dos serviços de saúde mental.

Entendemos como interpretação genealógica o procedimento que busca mapear as forças que estão buscando afirmação em determinado conceito ou prática, vendo nessas práticas campos de força onde se debatem varias vontades de potência, e não como um território definitivamente enquadrado em qualquer verdade dita indiscutível, seja uma afirmação científica ou uma evidencia teórica.

Desde já partimos do ponto de vista de que a questão tratamento biológico ou tratamento psicodinâmico é uma reedição da antiga, porém ainda atual questão alma x corpo, ou mente x corpo, ou alma metafísica/corpo mecânico.

Primeiro um passeio pelas concepções de alma no pensamento ocidental. Antes de Platão, ou melhor, antes de Empédocles, pré socrático, é difícil identificar algo como o que chamamos de alma hoje, ou seja, o núcleo absoluto, indivisível e imortal da subjetividade, o suporte transcendental do nosso Eu empírico.

Em homero não encontraremos alma dessa forma, encontraremos o daimon, força divina que irrompia na vida do homem, motivando um comportamento apaixonado, através de sua influencia direta no THIMÓS (ou humor, posteriormente).

Em Pitágoras um animismo universal povoa de daimons todos os fenômenos: assim o homem era constantemente afetado por múltiplos daimons, desde o daimon do som do sino ao daimou da luz da manhã, identificando mais o daimon a uma efetividade (como o Exu dos africanos) do que a uma unidade dotada de intenção e vontade como a alma.

É com o médico Empédocles de Agrigento que o daimon passa a ficar parecido com a alma: é uma substância que sobrevive à morte do corpo, e que se aperfeiçoa voltando a encanar em outra existência humana.

Para Heráclito, além do sujeito que renasce inúmeras vezes para finalmente se reintegrar ao Fogo Primordial, o daimon tem ainda outra configuração: como o ethos do homem, o daimon é tudo concernente à morada, ao retiro que o homem encontra em seus valores e suas concepção de mundo.

Para Sócrates, o daimon ainda não parece o que chamamos de alma: proveniente do contato dos deuses com o homem, aparece como um enunciado em vozes “de dentro” ou em sonhos, um fragmento significante através do qual o deus configura o destino do homem.

Porém, em meio a esse desfile de forças, configurações, significantes, todos subsumidos no nome daimon, aparece subitamente a transformação em alma, no pensamento de Platão: a alma, a essência divina individualizada em cada homem, morada do pensamento e da razão, viajante através do mundo ilusório das paixões e instintos, em direção ao contato final com o mundo das idéias, finalmente livre de todo obstáculo pulsional ou arbitrário (o corpo).

Na esteira de Platão, o cristianismo Paulino aprofunda a contradição corpo/alma: o corpo, voltado para o mundo com seus prazeres e dores, suas mudanças, instabilidades e acasos, batizado como o Homem Velho; o Homem Novo, a alma, livrando-se através da ascese de toda afetação instintual ou carnal, distanciando-se do mundo, rumo ao reencontro com Deus ou à aniquilação no Apocalipse.

Funda-se no ocidente o que chamamos de alma metafísica, o núcleo essencial do homem, substância indivisível e eterna, potencialmente livre do tempo, dos instintos e de todas as vicissitudes da carne, a origem da idéia do Eu racional governando no cenário da consciência, de forma lógica e indivisa, o destino humano.

Descartes no século XVI surge em defesa dessa carcaça necessária chamada corpo - é através dos nervos, habitados pelos espíritos animais, que o mundo se apresenta ao cérebro, sítio corporal mais próximo da alma, permitindo ao homem a conquista máxima do pensamento moderno, o conhecimento. A alma precisa do corpo para, alimentando a razão, fincar as bases do conhecimento.

A medicina iluminista do século XVII insistirá na reabilitação dessa parte do humano chamada pela Reforma Protestante de “saco de vermes”- afinal, o corpo passava a ser um território privilegiado no desbravamento dos funcionamentos químicos e físicos subjacentes a outro valor sagrado/metafísico: a vida. Ou seja, o corpo é uma janela de onde a ciência pretende finalmente vislumbrar as verdades dogmáticas do pensamento moderno: se a alma está no cérebro, e o cérebro no corpo vivo, o entendimento da mecânica do corpo finalmente franquearia as portas da anatomia da alma.

Com os primeiros estudos neuroanatômicos no século XIX, o cientista sente se aproximar ainda mais o sonho da anatomia da alma: a afasia de Broca, as lesões anátomo patológicas na Paralisia Geral Progressiva,

Não é difícil escorregar desse panorama para um debate técnico sobre a eficácia dos tratamentos biológicos e psicológicos do sofrimento psíquico. De um lado, os herdeiros da alma metafísica defendendo a cidadela da alma de qualquer subordinação ao corpo: o acesso á alma passa apenas pela palavra, pela intervenção de alma para alma que através de procedimentos hipnóticos, interpretativos, cognitivos, produzirá o efeito desejado, o alivio do sofrimento ou a adequação do comportamento.

Por outro lado, os herdeiros do corpo mecânico, apoiados nas descobertas genéticas e nas novas tecnologias da neurociência (os métodos de imagem cada vez mais precisos) reclamam, ressentidos, seu merecido lugar no triunfo sobre as mazelas da alma: os psicofármacos tem efeitos incontestes.

E é no cenário da interdisciplinaridade da equipe da Saúde Mental que se trava o combate cotidiano em busca da hegemonia de um saber final sobre a subjetividade. Mas de que combate se trata? Não se trataria, ao invés de uma interação entre forças encarnadas em diferentes saberes, de uma fuga para os seguros muros dos conhecimentos inquestionáveis, como o das evidências científicas (tratamentos farmacológicos, neuroimagem) ou da solidez vetusta das construções metapsicológicas?

Quais serão as forças efetivamente envolvidas nessa questão, ou se quisermos, na insistência na separação mente/corpo?

Entre outras, uma VONTADE DE CULPA: o corpo portador do pecado/pulsão está hierarquicamente Abaixo da alma/substância divina, que se antes só se redimia através do Verbo Divino, hoje só é acessível à fala do terapeuta autorizado por alguma construção metapsicológica inquestionável.

Ou então, o corpo, antes culpado, hoje objeto passivo da técnica, antes origem de todo o mal, hoje local dos erros genéticos ou bioquímicos que nos tornam suscetíveis apenas a intervenções genéticas, químicas, elétricas, mecânicas.

E quanto à dimensão econômica dessa tão valorizada questão? Quem tem prioridade sobre o território do sofrimento, quem pode explorá-lo de maneira que gere lucro? O psicoterapeuta autorizado pela tradição da alma metafísica ou o psiquiatra autorizado pela revanche do corpo mecânico?

Da mesma forma que não há mais sentido em acreditar em um Eu metafísico, único, também não há mais sentido em acreditar em um psiquismo exilado do corpo, ou uma biologia fundada num conhecimento imparcial e asséptico de laboratório; não há psiquismo que não seja corpo ou corpo que não seja psíquico.

Há o acontecimento humano atravessado por inúmeras forças em busca de afirmação, desde as inúmeras forças dentro de cada órgão (degeneração celular x regeneração) de cada organismo (novos anticorpos para novos vírus) até as relações permeadas por tantas outras forças (mães obsessivas com limpeza e seus filhos asmáticos, videogames e suas crianças hiperativas, guerra entre laboratórios pelo medicamento com menos efeitos colaterais).

Por certo, no novo século, a prática institucional/interdisciplinar não poderá se manter apoiada em questões aparentemente “neutras” como a polêmica biológico/psíquico. Não podemos mais nos furtar, desde que aprendemos sobre a multiplicidade de almas e Eus com Nietzche e Freud a praticar a cartografia das forças envolvidas em cada intervenção clinica proposta.

Gaya

“A principal idéia que este estudo da agressão veicula é que, se a sociedade está em perigo, a razão disso não se encontra na agressividade do homem mas na repressão daGaya: Ensaio genealógico - clinico de um caso de invisibilidade

agressividade do homem mas na repressão da agressividade pessoal nos indivíd agressividade do homem mas na repressão da agressividade pessoal nos indivíduos”.





D. W. Winnicott, 1950, “Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional”.



Maurício Garrote

mostrar detalhes 9 set (3 dias atrás)



OU seja:os vampiros "atuais"negam:as figuras da morte,as figuras do

morto como raivoso e invejoso,e a figura de uma forma de vida que é só

corpo,que vive,anda e goza sem precisar de alma,e sem temer o inferno





Maurício Garrote

mostrar detalhes 9 set (3 dias atrás)



OU seja:os vampiros "atuais"negam:as figuras da morte,as figuras do

morto como raivoso e invejoso,e a figura de uma forma de vida que é só

corpo,que vive,anda e goza sem precisar de alma,e sem temer o inferno

































Dedicado à Patrícia Almeida e

Todos os analistas “saídos” das

instituições por escutarem e

falarem demais

Hoje é uma segunda feira cinzenta. Estou no inicio da manhã (por volta das 08:00) na instituição para cuidados de crianças (até 14 anos) numa região característica da favela/periferia de São Paulo. Esta instituição é um braço de uma grande organização social da periferia, mantida há anos pela igreja (junto a parceria com prefeitura, estado, empresas e outros).

Esta descrição de alguma coisa grande, ampla, não bate com a cara do lugar. É uma casa pequena um sobrado com outros cômodos que se empilham no fundo, um lugar apertado onde eu sempre me surpreendia com uma nova porta que dava para um outro corredor com outras salas. O único lugar um pouco maior (do tamanho de uma cozinha grande de casa antiga) é o refeitório, onde estou agora junto com as vinte e sete crianças que estão morando no abrigo (é como todos aqui chamam essa instituição) nesse momento. É hora do café da manhã, as crianças segurando aquelas canecas de plástico coloridas e os pães com manteiga que todo mundo conhece.

Essa é minha terceira semana, e as minhas doze horas por semana (quatro horas três vezes por semana) já permitiram que em mim se sedimentassem alguns traços das crianças e dos funcionários (uma coordenadora, assistente social, uma enfermeira e três monitoras, cada período de doze horas).

Sou um médico fazendo a função de trabalhar com aspectos da Saúde Mental das crianças. Essa tarefa foi justificada pela coordenação da organização e pelo padre – também da administração – na entrevista de seleção para o cargo. Na entrevista fui informado que as crianças tinham sido encaminhadas pelo conselho tutelar local – eram filhos e filhas de mães que vinham sofrendo violência domestica, ou elas próprias vinham sofrendo esse tipo de violência.

Citei na seleção que além de psiquiatra era psicanalista, o que definia a princípio certos referenciais éticos na minha prática clínica. Esta parte do meu discurso foi completamente ignorada. Sabia medicar crianças, sim, respondi. Já tinha trabalhado na periferia, sim, nos últimos vinte anos, sim, essa resposta agradou.

Sendo assim aqui estou eu no refeitório, entre vinte e sete meninos e meninas. As monitoras não sentam, ficam de pé, por trás das crianças e de mim. A maior parte das crianças me pergunta coisas ou fala de algum sintoma físico, pedindo remédio (dor de barriga, ferida na perna, coceira na cabeça).

No meio das crianças está ela, a pequena menina sem nome, da qual vou me ocupar principalmente nesse relato. Para falar dela me sirvo antes de um exibicionismo técnico sobre a transferência ou contratransferência, do aforismo de Nietzche.

“O que é então o próximo? – Que compreendemos de nosso próximo, senão suas fronteiras, quero dizer, aquilo com que ele se inscreve e se imprime em nós e sobre nós? Nada compreendemos dele, senão as mudanças em nós que são por ele causadas – nosso conhecimento dele semelha um espaço oco a que se deu uma forma. Nós lhe atribuímos as sensações que os seus atos despertam em nós, dando-lhe, assim, uma falsa positividade inversa. Nós os construímos segundo o que sabemos de nós, dele fazendo um satélite de nosso próprio sistema : e, quando ele nos ilumina ou se escurece, e somos a causa ultima de ambas as coisas – nós acreditamos o contrario! Mundo de fantasmas, este em que vivemos! Mundo invertido, virado, vazio, e no entanto sonhado cheio e reto!”



F. Nietzsche, Aurora, ........... 118.



Fique claro portanto, que me limitarei a falar da menina sem nome em mim, por mais que isso ofenda qualquer assepsia da abstinência analítica ou de um desejo “objetivamente” do pesquisador social.

Ninguém nunca falava da menina sem nome, mas ela estava sempre lá, entre as outras crianças. Fosse nas refeições, ou nas brincadeiras, ela fazia parte do grupo, apesar do grupo parecer não enxergá-la. Na hora de escolher quem era da equipe de quem, ela era sempre a ultima: não se lembrava dela como possível companheira. Os meninos falavam das meninas, umas chatas, outras bonitas, mas nunca dela. Era como se a menina sem nome fosse quase um equipamento institucional: brincava, nunca brigava ou reclamava, conversava com as outras crianças e as tias (as monitoras). Suas respostas eram sempre adequadas, falava obrigado e por favor sempre. Ou seja, a menina sem nome era o exemplo.

Era como as monitoras me falavam dela. Um exemplo! Tinha dez anos, mas era “muito madura”, sabia entender quando uma criança menor pegava seu brinquedo, não brigava, sabia dar a vez para a outra criança que estava precisando mais de ir no banheiro. Dava gosto! “Seu nome... Ah! Esqueci! Como é mesmo o nome dela, gente?

Diz a tradição cabalística que a alma, antes de nascer na Terra, traz em sua memória todo o conhecimento universal. Por ocasião de seu nascimento, Deus lhe dá o seu nome e, colocando o dedo sobre seus lábios, faz a advertência shhh (Psiu...) E a alma vem à luz sem lembrar de nada.

Bem, talvez a menina sem nome não tivesse passado por essa parte, será então que ela não tinha sido destruída da memória sobre tudo o que existe? O que será que ela insistia em recordar?

O nome da menina era Gaya. Ela me contou, assim, sem muito interesse. Eu a havia conhecido no dia que me chamaram “com urgência” – eu estava em outra das infinitas salas – para atender Gaya, que estava tendo “uma convulsão”.

Do ponto de vista médico, era evidente não se tratar de uma convulsão epiléptica, (nem parcial complexa, nem generalizada). Gaya estava hipnotizada por si mesma: olhos bem abertos, sentada no chão, oscilava com o corpo para frente e para trás, contando a história de uma menina que ao nascer deixou a mãe muito triste – no meio da história gritava “Mata ela! Mata ela! Eu quero que mate ela!” Após isso adormeceu, dormindo por duas horas.

Ora, parece que de algum jeito já estavam “matando ela” – ela não tinha nome. Ela conseguia, com sua perfeita correspondência ao desejo institucional, se tornar invisível. Me lembro de Celso Athayde e M V Bill.

“Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível!!”... Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito.

“Quando o fazemos, anulamos a pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo: tudo o que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos.” Ou : “o preconceito provoca invisibilidade na medida que projeta sobre a pessoa um estigma que a anula, a esmaga e a substitui por uma imagem caricata, que nada tem a ver com ela, mas expressa bem as limitações internas de quem projeta o preconceito. Por isso seria possível dizer que o preconceito fala mais de quem o enuncia ou projeta do que do quem o sofre, ainda que, por vezes, sofrê-lo deixa marcas”



(Luiz E. Soares, M V Bill e Celso Athayde – CABEÇA DE PORCO)



O que o preconceito, ou a caricatura de Gaya, veiculado pelas monitoras ou pela própria crise convulsiva dizia da instituição ou da família de Gaya?

Conversei com a mãe de Gaya, Samanta, na sala de seu barraco na área pública (outro nome para favela) que envolvia como um mar a organizada e estável ilha da organização onde eu vinha trabalhando.

Já no começo da conversa perguntou se dava pra eu dar uma receita de Fluxetina e uma de Diazepam, o médico do posto de saúde próximo tinha ido embora (que surpresa!) e ela estava precisando, estava muito nervosa.

O que a deixava tão nervosa? O Bili, pai da Gaya, era usuário de crack. Não que fosse bandido ou trabalhasse no tráfico, mas acabava queimando tudo o que ganhava trabalhando de frentista “nas pedra” – e chegava o salário, Bili sumia dois, três dias, voltava seco, cara chupada, “só o pó”. O que salvava era que Samanta fazia uns bicos de doméstica, tirava algum para por comida na mesa. Hoje era sua manhã de folga.

Me ofereceu um café bem doce. A preocupação dela era com a menina – quase perdeu ela – sangrou no ultimo mês – mas a patroa deu uma força, conseguiram vaga no SUS, ela ficou deitada dois meses e a menina nasceu – foi a patroa que deu esse nome de Gaya, até no nome a menina ficou estranha.

Só que depois que a menina nasceu ela ficou louca da cabeça – falava coisa com coisa, não queria tomar banho nem comer – pensava até em fazer coisa ruim com a criança. Não deixaram ela sair do hospital – foi para o hospital de maluco enquanto Gaya ficou com a patroa – o Bili tinha sumido, pirou.

Quando voltou não conseguia nem tomar banho sózinha – os remédios deixaram ela dura, ela até babava. Olhava para a menina ali, coitadinha, uma criaturinha de Deus – mas ela, mãe, parecia inválida, às vezes até se mijava. Dentro dela tudo vazio: não queria TV, não queria comer, nem a cesta básica que a patroa trazia. A patroa insistia pra ela pegar a criança, ela pegava, mas, sabe, era como se pegasse um pedaço de pau. Ela tão bonitinha! E a mãe aquele traste. O Bili deu de ficar mais louco – batia na mulher quando chegava chapado, gritava que ela agora não prestava mais pra nada, nem pra foder. Nem pra foder.

Quando o conselho tutelar veio (a vizinha falou que a criança gritava a noite toda) descobriu as marcas de queimadura de cigarro nas costas da menina. A mãe foi pro hospital de maluco, perdeu a guarda da menina, a menina foi pro abrigo, sei lá, faz tempo que não vejo.

Saí do barraco e olhei aquele cenário imutável da periferia: um combate sangrento entre forças – potências buscando mais potência, o que na periferia queria dizer: sobreviver. Na viela do barraco da mãe de Gaya apareciam três cadáveres por semana. Tiros na cara, se tinham dedurado o chefão da boca de fumo, tiros na bunda, se não tinham pagado.

A vida banalizada na carne morta na porta do barraco ou imersa no esgoto a céu aberto, o cenário dos primeiros anos de vida de Gaya, além da mãe deprimida e espancada pelo pai. Bili louco com as pedras, empinando pipa e usando bermuda, “só na brisa”

Estou na reunião de equipe. Só mulheres, todas muito caridosas, orgulhosas de sua contribuição para tornar o mundo melhor.

Falo da história de Gaya: a depressão da mãe, o desejo de que a filha morresse, a tortura com as queimaduras de cigarro, todo o ódio sentido pela criança que não pôde se atrever nem a ser criança, transformada em mini adulta, sem lugar para ficar com raiva. A raiva hoje aparece na descarga motora das convulsões, na tragédia novamente representada onde entra no lugar da mãe e grita para que matem aquela criança.

Escândalo geral. Desconforto entre as monitoras. “Por que conversar justo sobre a Gaya? Ela é um exemplo, é uma das melhores crianças!”

Quem nos dera todas as crianças fossem Gayas, educadas, gratas, limpinhas!

Percebi que minha ultima chance era recorrer à autoridade de um discurso técnico. Lembrando do texto “Agressão e sua relação com o desenvolvimento emocional”, de São Winnicott no “da Pediatria à Psicanálise”, engatei uma primeira e tentei:

Quando a criança é bem pequena, logo ao nascer, ela tem alguns comportamentos dirigidos à mãe que podemos ver como agressivos – a criança, em fases de excitação, morde o mamilo da mãe, bate nela, solta gases – no entanto nessa fase a criança ainda não reconhece que a mãe agredida nos momentos de excitação é a mesma que ela acaricia em momentos de um amor mais apaziguado, de satisfação pulsional. Winnicott chama essa fase de fase da crueldade ou “ruthlessness”, onde a criança ainda não integrou dentro de si as “duas mães”, a agredida e a que recebe carinho.

No entanto, se a mãe mantém-se presente, viva na relação com a criança, esta passa a integrar as “duas mães” numa única, passando a desenvolver uma preocupação e uma culpa em relação à mãe, o que dará origem ao impulso de cuidar da mãe , a capacidade de amar.

Claro que não falamos aqui de uma compaixão do bebê pela mãe, mas de um estado de simbiose tal entre a dupla mãe – bebê que faz com que a criança sofra ao perceber o sofrimento da mãe.

Se a mãe não reconhece o impulso da criança para a reparação , ou se aparece para a criança como sempre ferida, machucada, machucada, deprimida, as fantasias de estar destruindo a mãe e a ameaça à própria existência advindas dessa fantasia (sem mãe não há bebê), a criança vai construir mecanismos preventivos de manifestação de agressividade, como tornar-se cada vez mais adaptada ao desejo dos adultos.

Imaginemos um bebê que tenha vivido em escala monstruosa a ameaça da mãe sucumbir aos seus ataques (por uma intensidade pulsional desmesurada ou por uma mãe deprimida). Esse bebê desenvolverá mecanismos de monitorização constante do bem estar da mãe (medido, por exemplo, pelo carinho que a mãe lhe dispensa).

Na melhor das hipóteses, esse bebê se tornará alguém cuja neurose lhe possibilita um talento; um médico, um psicólogo, um assistente social, etc. Na pior, vai se tornar a menina sem nome, a menina invisível, Gaya.

Na reunião da equipe, após três meses de seis, de forma “pesarosa”, “contrita”, “profissional”, a coordenadora da equipe me comunicou que meus serviços já não eram necessários naquela instituição. Meus conhecimentos técnicos “avançados” eram demais para as pessoas simples que eram as monitoras, e uma má interpretação do que eu falava podia levar a idéias perigosas como a possibilidade da criança ter raiva da mãe, ou mesmo da mãe desejar matar seu filho.

Hoje guardo uma lembrança boa de Gaya. Em atendimento que usei a técnica da narrativa, ela me contou uma história de uma menina que freqüentava um cemitério. Com um lápis ela se encarregava de escrever nas lápides o nome de quem havia morrido (as lápides estavam apagadas) e assim agora podia separar os nomes dos vivos dos nomes dos mortos.

Entre os dos vivos, encabeçando a lista, claro, Gaya.

Sobre a tentativa de ser um monstro,e sua relativa impossibilidade

Este é um texto escrito durante meu trabalho como médico do PSF na UBS Boracea,quando atendia moradores de rua albergados no Albergue Boracea.Apesar de ter sido escrito há um ano,acredito que há aí algumas coisas interessantes.

No filme "Psicopata Americano"o protagonista passa o tempo todo auto-hipnotizado em devaneios onde é um assassino em série,praticando violências com homens e mulheres colegas de trabalho,prostitutas,sempre prisioneiro de dois torturantes imperativos:dar-se a conhecer,ser descoberto pela polícia como um monstro psicopata;divulgar ao mundo sua personalidade definitivamente monstruosa,atestada no caráter caricato(na estética dos filmes "trash")dos assassinatos que comete.
Nessa construção compulsiva de uma narrativa fantástica de si mesmo,é gritante a angústia com que tenta convencer as pessoas de seu círculo de convivência,como seu advogado,de que é o assassino-monstro;mais até do que isso,o desespero de "ser",ser enquanto finalmente reconhecido por um outro,num ato supostamente impossível de ignorar."Ser" um monstro,de-monstrado,desdobrdo em uma monstruosidade comprovada no dispor lúdicamente ,como uma criança sádica,do corpo de outras pessoa.
Essa máscara do desespero ontológico da proximidade do abismo "não ser reconhecido como alguém",estruturada em teoria como ideal do ego,falso self,ou qualquer figura que se caracteriza justamente por se dizer a partir do que não é,presença esvaziada de uma casca que se dobra sobre si mesma,cercando e protegendo apenas o fato de não ter núcleo,fica tanto mais patente no momento cultural presente quanto conquistamos vagarosamente a coragem de olhar para ela.
No filme "O Lutador"(divulgado como o trabalho onde Mickey Rourke voltaria a MOSTRAR o ator que "verdadeiramente é") o personagem é um lutador de Luta Livre,ou seja,um ator desse espetáculo que característicamente expressa em tons trágicos ,de plasticidade histriônica,os mitos do herói e do vilão,da justiça e da traição,da dor e do poder de produzir a dor em algum outro.